Ao Cair da Noite | O inconsciente e nosso medo do desconhecido [Explicação]

O que desconhecemos pode influenciar mais nosso comportamento do que o que de fato conhecemos. Esta é a proposta de Ao Cair da Noite, um verdadeiro thriller psicológico, que apesar de deixar perguntas em aberto, nos responde muito sobre a natureza humana.

O longa, disponível no Netflix, foi lançado em 2017 no Overlook Film Festival, um festival anual de quatro dias dedicados a filmes de horror. O título original em inglês, It Comes at Night, passa uma ideia ligeiramente diferente da tradução que tivemos no Brasil, já que uma versão mais assertiva seria “O que Vem à Noite” ou “Aquilo que Vem à Noite”. Apesar de apenas um detalhe, o título original com certeza tem um melhor efeito, considerando a proposta do diretor Trey Edward Shults em criar e manter uma constante tensão durante os 91 minutos da obra.

Em mundo pós-apocalíptico, uma família vive isolada em uma casa na floresta, tentando racionar os escassos recursos para garantir sua sobrevivência. Ainda que não fique claro o horror que habita as redondezas, algum tipo de vírus transmitido pelo ar parece infectar os poucos sobreviventes. O equilíbrio mantido por Paul (Joel Edgerton), Sarah (Carmen Ejogo), e seu filho Travis (Kelvin Harrison Jr.), que sofre de pesadelos e alucinações noturnas, é perturbado com a aparição de uma outra família, que lhes pede refúgio.

Will (Christopher Abbott) e Kim (Riley Keough), que preocupam-se com a sua própria falta de suprimentos e a dificuldade em alimentar e proteger seus filhos, propõe uma cooperação. Apesar das melhores intenções das duas famílias, a colaboração rapidamente evolui para um estado de desconfiança e paranoia, enquanto o terror que espreita as redondezas chega cada vez mais perto.

 

ao cair da noite familias

 

Ao Cair da Noite é apenas o segundo filme de Shults, que escreveu e dirigiu o drama de baixo orçamento Krisha (2015), mas já nos mostra um trabalho primoroso em um roteiro intencionalmente “econômico”, que não se importa em deixar elementos de fora deliberadamente para criar e manter o suspense, conforme afirmou em entrevistas.

No entanto, esta decisão de Shults gerou um misto de críticas positivas e negativas sobre o filme. Afinal, assim como em Um Lugar Silencioso (2018), de John Krasinski, Ao Cair da Noite não traz respostas sobre que eventos teriam se sucedido para levar o mundo ao estágio apresentado. E tão pouco sobre que tipo de ameaça aterroriza a humanidade.

É importante entender que o filme é exatamente sobre isso: como agimos diante do desconhecido. E nesse aspecto, o diretor faz um trabalho magistral, nos colocando na mesma situação dos personagens, de medo e ansiedade constante, ainda que não conheçamos a real ameaça. Podemos ainda comparar o filme com A Vila (2004), de M. Night Shyamalan, em que vemos como a sociedade pode agir e se organizar diante de um mal sempre iminente, levando seus indivíduos a fazer coisas horríveis em nome de sua sobrevivência e a de sua família.

Ao Cair da Noite abre muitas perguntas e dá poucas explicações, por isso é necessário cuidado para não nos deixarmos desviar do que realmente importa na obra.

A partir daqui, esta resenha começará a apresentar spoilers, prossiga com cuidado.

 

Teorias e a Navalha de Occam

ao cair da noite 2

 

Diante de duas alternativas para explicar um fenômeno, a explicação mais simples geralmente é a mais provável. É o que defende a Navalha de Occam, um princípio lógico epistemológico cunhado pelo filósofo inglês William de Ockham.

As “navalhas filosóficas” são ferramentas lógicas que ajudam a eliminar explicações improváveis ou impossíveis para determinados eventos, e dentre elas, a Navalha de Occam é uma das mais famosas. Este preceito, também conhecido como Lei da Parcimônia, afirma que a explicação para qualquer fenômeno deve assumir a menor quantidade de premissas possível, ou seja, devemos buscar sempre a versão mais “simples”.

É claro que existem exceções em que as explicações mais complexas acabam se provando como verdadeiras em oposição as mais simples, no entanto, seria dever do filósofo, e de todos que buscam conhecimento, presumir o mínimo possível sem evidências concretas.

No entanto, este nem sempre é o princípio que rege as teorias de fãs sobre filmes e séries.

As perguntas deixadas em aberto por Shults em Ao Cair da Noite geraram muitas discussões. Basta uma busca em sites e fóruns online para nos depararmos com teorias diversas sobre qual a natureza do vírus, se o filho de Will e Kim estaria realmente infectado, como Travis teria contraído o vírus e se seus sonhos eram reais, ou que tipo de criatura estaria à espreita à noite neste mundo.

Em geral, as teorias de fãs são um ótimo recurso para dar mais profundidade a uma obra. Ou, através da inteligência coletiva, chegar mais próximo do entendimento das intenções do autor. No entanto, no caso de Ao Cair da Noite, esse tipo de discussão poderia retirar a profundidade e afastar os espectadores da principal mensagem do filme: o medo do desconhecido, através do fato de o que desconhecemos pode nos influenciar muito mais do que o que conhecemos.

Aqui entra a Navalha de Occam. Talvez a explicação mais simples seja a mais verdadeira, e realmente não existam monstros. Provavelmente tudo que existe é um vírus, que desencadeou um estado de caos na sociedade, a partir da luta por sobrevivência e recursos. Isto teria gerado uma forte desconfiança dos indivíduos em relação a seus vizinhos, os obrigando a viver de forma isolada, protegendo-se e barricando suas casas.

Seguindo a mesma lógica, talvez os pesadelos de Travis não sejam acontecimentos reais, como muitas teorias sugerem. De acordo com a explicação mais simples, seriam realmente apenas pesadelos, despertados pelo forte trauma desta nova configuração social onde a desconfiança e ansiedade constante são imperativos para a sobrevivência.

Mas não é porque nossa análise do filme segue a Navalha de Occam, buscando a explicação mais simples para os fatos, que acreditamos que a obra não possa ter profundidade. O que leva a explicação ao próximo tópico.

 

Mas o que realmente vem ao cair da noite?

Ao Cair da Noite Lanterna Travis

 

Se não existem monstros ou criaturas, o que raios vem a noite?

Desde os primórdios da humanidade, a escuridão sempre representou o medo do desconhecido. Enquanto o dia oferecia possibilidades de explorar, entender o mundo e obter recursos, a noite era o momento de se abrigar. Sem a luz do dia, o ser humano fica mais vulnerável a predadores e outros perigos.

No entanto, a noite é exatamente o período em que o homem precisa de repouso e descanso através do sono. E este é o momento em que fica mais indefeso, o que o levou a sempre buscar algum tipo de segurança, evitando dormir ao relento, seja em cavernas ou em construções.

Apesar de não precisarmos mais lutar da mesma forma pela sobrevivência como na época de nossos antepassados, o “medo do escuro” é algo que perdura até os dias de hoje, através de nossos instintos e de nosso imaginário coletivo. É o que favorece a ocorrência de pesadelos e muitas vezes faz as crianças buscarem segurança na cama dos pais.

O que vem à noite, portanto, é a ansiedade e o medo, os temores do inconsciente. O que é representado através dos pesadelos de Travis.

Na teoria psicanalítica, o conceito de inconsciente diz respeito aos processos mentais que ocorrem sem que o sujeito tenha consciência. Não à toa é muito utilizada a metáfora do iceberg para explicar a mente humana, em que o consciente seria a ponta que fica acima da superfície da água e o inconsciente a parte submersa, de difícil acesso.

Para Freud, o inconsciente guardaria os conteúdos que por algum motivo reprimimos. Traumas, desejos, memórias dolorosas, vergonhas, paixões proibidas, entre outros. Ou seja, processos psíquicos que possam nos ser angustiantes ou de difícil controle, e por isso, como um mecanismo de defesa, os manteríamos guardados.

Em A Interpretação de Sonhos, o autor afirma que o sonho atuaria uma porta que conduz ao inconsciente, o local onde estão guardadas estas memórias. Isto é, através das construções imagéticas e narrativas de um sonho, o inconsciente revelaria, por meio de simbolismos, conteúdos emocionais “mal resolvidos”.

 

porta vemelha ao cair da noite

 

A porta vermelha, na alegoria do filme, nos remete a esta passagem do consciente para o inconsciente. A fixação que temos pelo que não entendemos.

Dentro de casa, o que nos é familiar. A parte do mundo que entendemos, e onde nos sentimos seguros. Do lado de fora, a parte do iceberg que está submersa: o desconhecido. É onde vivem nossos traumas, desejos proibidos e tudo que reprimimos. Daí a motivação para manter a porta vermelha sempre fortemente trancada, a qualquer custo.

Nos pesadelos de Travis, frequentemente a porta é atravessada. Uma metáfora ao processo em que o personagem entra em contato com os medos e conteúdos reprimidos em seu inconsciente. Diferentemente do filho de Will e Kim, Travis já estaria velho demais para invadir a cama dos pais durante à noite e precisaria confrontar suas próprias questões.

A porta vermelha, que no mundo real representa a segurança das ameaças exteriores, faz um paralelo direto com o inconsciente enquanto um mecanismo de defesa. Ao final de Ao Cair da Noite, quando a porta vermelha é aberta, é quando a catástrofe acontece, e os maiores medos tornam-se realidade. A partir de então, não dura muito tempo até que o equilíbrio e a colaboração entre as famílias se transformem em uma busca egoísta e brutal pela sobrevivência.

O mérito de Ao Cair da Noite é nos mostrar nossa dificuldade em lidar com o desconhecido, seja no ambiente externo do mundo, ou no interno, de nossas mentes. Além de fazer uma crítica ao modo egoísta e desconfiado de como agimos em uma situação de perigo e recursos limitados. Nestes casos, lutamos para assegurar a sobrevivência de nossa família, enquanto consideramos quaisquer outros como estranhos.

Afinal, somos treinados a interpretar o que não temos familiaridade como uma fonte de perigo e agir com desconfiança, estejamos falando da escuridão da noite, de nosso inconsciente, ou de pessoas fora de nossos círculos sociais.

O medo é o pior inimigo de nossas decisões.

 

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Marcos Malagris

Publicitário, professor de marketing digital e Psicólogo, gasta seu escasso tempo livre navegando na Interwebz, consumindo nerdices e contemplando a efemeridade da existência. Me siga no Twitter ou no Facebook!

3 thoughts on “Ao Cair da Noite | O inconsciente e nosso medo do desconhecido [Explicação]

  • 28 Julho, 2018 at 2:33
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    Parabéns pelo texto. Acabei de assistir o filme e gostei muito, concordo com o que você disse.

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  • 4 Abril, 2019 at 6:13
    Permalink

    Talvez nunca tenha havido um momento tao propicio para esse tipo de trama como o final do seculo 20, e esses primeiros anos do 21, dado o estado das coisas na esfera global. Em seu filme “Ao Cair da Noite”, o roteirista e diretor Trey Edward Shults mostra estar bastante ciente disso.

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