Infiltrado na Klan | 4 referências históricas no filme de Spike Lee

Spike Lee, mestre em fazer críticas ao racismo enraizado em nossa sociedade, obteve sucesso novamente. Em Infiltrado na Klan, o diretor de Malcolm X (1992) e Chi-Raq (2015) utiliza do humor para suavizar a abordagem de uma história envolvendo certa organização que de engraçada não tem nada: a Ku Klux Klan.

Inspirado no livro homônimo e biográfico de Ron Stallworth, Infiltrado na Klan retrata a absurda e surreal história de Stallworth (John David Washington), primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs que, na década de 70, trabalhou infiltrado na Ku Klux Klan para ajudar a desmascarar membros da organização. Para os encontros ao vivo, Ron utilizava um policial branco (no filme, interpretado por Adam Driver) que se fazia passar por ele.

Lee tomou conhecimento da história como uma sugestão de projeto dada por seu amigo Jordan Peele. Peele ligou para Lee e contou a surreal história para o cineasta, que ficou interessado em transformá-la em um filme.

A ideia de um grupo de pessoas acreditar na supremacia de uma raça e pregar o ódio e extermínio a todas as outras é tão absurda que algumas situações de Infiltrado na Klan acabam ganhando contornos cômicos. Afinal, a crença na superioridade branca beira o absurdo.

Parte do serviço prestado pelo filme é exatamente destacar comportamentos tão indiscutivelmente racistas que eles simplesmente não podem ser ignorados. É praticamente impossível existir alguém que não aja de forma preconceituosa em algum momento da vida (ou do dia). O problema maior não é agir com preconceito. É não reconhecê-lo, ou, pior, legitimá-lo, tentando justificar o injustificável.

Ao assistir no telão alguém dizendo que odeia negros e que eles merecem morrer pelo crime audacioso de sua existência, a pessoa comum terá uma dificuldade maior de não reconhecer o absurdo de seus próprios preconceitos. Legitimar suas atitudes preconceituosas será uma tarefa mais árdua, pois a pessoa foi confrontada com situações tão surreais que não podem ser ignoradas.

Com isso, Infiltrado na Klan cumpre seu essencial papel de gerar uma reflexão no espectador sobre o reconhecimento de suas próprias ações preconceituosas, o que contribui para a deslegitimação do seu discurso. Ninguém gosta de assumir preconceitos, uma vez que isso vai de encontro à imaculada imagem que possuímos de nós mesmos. Assim, o reconhecimento de nossas falhas é o primeiro passo para o fim do argumento falacioso de “não sou preconceituoso, mas…“. Pela primeira vez, nos enxergamos como parte dos seres intolerantes, o que nos permite uma reflexão autocrítica de nossas atitudes.

Para gerar toda essa discussão, o filme de Spike Lee faz referência a pessoas e acontecimentos históricos marcantes de nossa sociedade. A seguir, discutiremos cada um deles.

 

Atenção! Os próximos tópicos desta resenha contêm spoilers de Infiltrado na Klan! Prossiga com cuidado.

 

O verdadeiro Ron Stallworth de Infiltrado na Klan

Ron Stallworth na vida real e em Infiltrado na Klan

 

Ron Stallworth é um norte-americano conhecido por ser o primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs. Nos anos 70, Stallworth trabalhou como infiltrado na temida Ku Klux Klan (KKK), ajudando a desmascarar alguns de seus membros. Já que Ron era negro, seu amigo Chuck se passava pelo policial nos encontros ao vivo. Enquanto isso, Ron mantinha contato telefônico com vários membros da organização, tendo conversado até mesmo com David Duke, líder da KKK, para reclamar que sua carteirinha de membro estava demorando para chegar em sua residência.

Após o fechamento da investigação sobre a KKK, Ron manteve sigilo sobre toda a operação. Até que em 2006, um ano após sua aposentadoria, concedeu uma entrevista a um jornal e revelou detalhes de seu trabalho como infiltrado na KKK, inclusive que diversos membros da organização faziam parte do Exército americano.

Em 2014, Ron publicou o livro “Black Klansman” que deu origem anos mais tarde ao filme do diretor Spike Lee.

Em entrevista a um canal norte-americano, Ron afirma que alguns detalhes surreais do filme são verdade. Dentre eles, o ex-policial de fato cometeu o erro de dar seu nome completo verdadeiro à Ku Klux Klan ao solicitar ser membro da organização. Ron também conseguiu tirar uma foto com David Duke, com quem já havia estabelecido contato por telefone.

 

 

Ku Klux Klan

membros da Ku Klux Klan

 

A Ku Klux Klan foi uma seita racista fundada em 1866 no Tennessee, no sul dos Estados Unidos. Ela surgiu como um clube entre os confederados, que eram soldados que lutaram pelo Sul dos Estados Unidos na Guerra Civil norte-americana, também conhecida como Guerra de Secessão (1861-1865).

Na Guerra Civil, os estados do Sul dos EUA, escravocratas, declararam independência do restante do país e criaram os Estados Confederados da América. Em contraposição estava a União, representada pelos estados do Norte, que queriam manter a unidade territorial do país. Por estarem interessados na expansão das relações comerciais, os estados do Norte eram a favor da abolição da escravidão, já que escravos não possuem poder de compra.

Os estados do Sul perderam a guerra, de modo que a configuração atual dos EUA é a conhecemos hoje, compreendendo todos os seus 50 estados. Esse contexto histórico é necessário para a compreensão do surgimento da KKK.

Com o fim da guerra e a garantia da união do país, houve a abolição da escravidão em todo o território nacional e foi dado início à garantia de direitos civis e constitucionais aos negros ex-escravos. Esse foi um golpe inaceitável para os estados do Sul, já que a maior parte da mão-de-obra dos latifúndios era composta de escravos.

Como consequência surgiu a KKK, um movimento racista que servia como resistência aos padrões de política liberal impostos ao sul pelos estados do norte, e que promovia atos de violência contra os negros ex-escravos. Em 1882, a Suprema Corte dos EUA declarou a inconstitucionalidade da existência da KKK, mas em 1915 a organização ressurgiu com um viés nacionalista extremo. Dessa vez, o discurso de ódio englobava não somente os negros, como também imigrantes, judeus, dentre outras minorias. O novo clã passou a ser representado por uma cruz em chamas, vista nos atos de Infiltrado na Klan.

A recuperação do fôlego da organização em 1915 se deu principalmente pelo lançamento do filme O Nascimento de Uma Nação (1915), de D. W. Griffith. O filme é uma chocante apologia ao racismo e às atrocidades cometidas pela KKK, mas foi um sucesso na época. Nele, homens e mulheres espancam negros, e um negro é acusado de estuprar sua senhora branca.

Após perder força na Depressão dos anos 30, a KKK ficou novamente em ascensão na década de 60. Nos anos 70, época em que se passa o filme, a KKK quase desapareceu, após grupos de direitos humanos exigirem indenizações na justiça contra as ações perpetradas por seus membros.

Hoje, apesar de ainda existir, ela foi substituída em número por grupos extremistas tão ou mais letais, como neonazistas e outras organizações de extrema-direita.

A Ku Klux Klan já foi retratada inúmeras vezes no cinema, e de modo sempre impactante. Além de Infiltrado na Klan, um dos últimos filmes a falar sobre o clã foi Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi. Nele, em um estado majoritariamente ruralista e racista, um negro recém chegado da guerra faz amizade com um oficial branco cuja família é dona das terras na qual habita.

 

A chocante história de Jesse Washington

cena sobre o caso de Jesse Washington em Infiltrado na Klan

 

Em um momento extremamente emocionante e revoltante de Infiltrado na Klan, Jerome Turner (Harry Belafonte) conta a atrocidade que presenciou quando era garoto.

 

Se você é mais sensível a cenas fortes, sugerimos pular este tópico, pois ele contém descrições gráficas de um linchamento.

 

Em 1916, Jesse Washington, um rapaz negro de apenas 16 anos, foi acusado de estuprar sua patroa branca em Waco, Texas. Jesse, que tinha visível dificuldade de aprendizagem, foi coagido a confessar pelos policiais que o prenderam. Não houve testemunhas do crime, mas com sua confissão um júri formado exclusivamente por brancos o condenou à pena de morte após apenas minutos de deliberação.

Assim que terminou seu julgamento, Jesse foi arrastado para fora do tribunal, onde foi linchado por centenas de pessoas. Posteriormente, Jesse foi acorrentado em um poste, castrado, e teve seus dedos cortados para que não escapasse. Uma plateia de milhares de pessoas assistiram enquanto o corpo de Jesse pegava fogo. Partes de seu corpo foram vendidas como lembranças daquele dia, enquanto as fotos de seu cadáver carbonizado foram transformadas em cartões postais.

 

 

Jesse não morreu em vão. Seu linchamento foi considerado uma barbárie, e, com a opinião pública em desfavor do acontecimento, a prática foi desencorajada pelos demais políticos norte-americanos nos anos que se sucederam.

Já nos anos 2000, houve uma campanha para a instalação de um monumento em homenagem a Jesse na cidade que promoveu seu linchamento. Entretanto, a maioria dos habitantes desaprovou a ideia.

 

As manifestações e tumultos em Charlottesville

grupo neonazista em Charlottesville em 2017

 

Para aqueles que acreditam que não existe mais racismo ou nazismo hoje em dia, o final de Infiltrado na Klan é um lembrete do contrário.

O filme é encerrado com cenas reais de tumultos e confrontos entre grupos neonazistas, suas vítimas e a polícia na cidade de Charlottesville. Dentre os acontecimentos, são mostradas cenas fortes de negros friamente atropelados por aqueles que acreditam na supremacia branca durante uma manifestação anti-nazista.

Os tumultos começaram quando foram aprovadas as remoções de monumentos exaltando Confederados racistas ao longo dos estados do sul dos EUA. A atitude foi o suficiente para mobilizar grupos neonazistas, que passaram a se manifestar e cometer atos racistas como protesto à decisão.

O atropelamento retratado no filme ocasionou a morte de Heather Heyer, de 32 anos.

Dias após os acontecimentos, o presidente dos EUA Donald Trump fez um pronunciamento culpando os “dois lados” pelo resultado: “Você tem de um lado um grupo que é ruim. E do outro lado há um grupo que também é muito violento. Ninguém quer dizer isso. Então eu estou falando agora.

Lee optou por colocar trechos dos discursos de Trump no longa como parte de um lembrete a todos que o atual presidente dos EUA é capaz de falar coisas do gênero.

 

Infiltrado na Klan é um excelente filme, que se faz extremamente necessário nos dias atuais. Precisamos nos lembrar de que racismo não é cometido apenas por aquele que abertamente odeia negros ou que os agride. Só quem pode determinar o que é ou não racismo é a vítima do crime, que sofre com suas consequências. A todo o resto, só nos resta reconhecer nossos preconceitos (e privilégios), compreender a impossibilidade de justificá-los, e buscar evoluir com os erros cometidos, para que não se repitam.

Todo o poder para todo o povo!

 

Você gostou do filme? Deixe nos comentários! 🙂

 

Para acompanhar nossos próximos posts, não se esqueça de nos seguir no FacebookTwitter ou Youtube😉

Boo Mesquita

Geek de carteirinha e cinéfila, ama assistir a filmes e séries, ir a shows, ler livros e jogar, sejam games no ps4 ou boards. Quando não está escrevendo, pode ser vista fazendo pole dance, comendo fora ou brincando com cachorrinhos. Me siga no Instagram!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *