Altered Carbon | Niilismo cyberpunk, heroísmo e a Negação da Morte [Explicação]

Altered Carbon foi uma das grandes apostas da Netflix para o ano de 2018.

Criada por Laeta Kalogridis, a série é uma adaptação do livro homônimo do autor inglês Richard K. Morgan, que se ambienta em um mundo distópico cyberpunk, muito inspirado por obras como Blade Runner, Matrix, A.I. – Inteligência Artificial, e o pai do gênero, o livro Neuromancer de William Gibson.

A narrativa acompanha a saga de Takeshi Kovacs, que começa como um revolucionário interpretado por Will Yun Lee, cujo principal objetivo é acabar com a tecnologia que permite a imortalidade criada artificialmente no universo da série. Kovacs é capturado e sua consciência é transferida para um novo corpo (interpretado por Joel Kinnaman) centenas de anos depois, “ressuscitado” pelo milionário Laurens Bancroft (James Purefoy) para investigar sua própria morte.

Um dos pontos fortes de Altered Carbon sem dúvida é sua rica mitologia, que dentre uma variedade de temas foca sua narrativa nos desdobramentos psicológicos, sociais e políticos do que seria a maior invenção da história da humanidade, os cartuchos corticais.

 

 

No futuro de Altered Carbon, que se passa no século 24, a invenção dos cartuchos corticais representam a vitória da raça humana sobre a morte.

Ao nascer, toda pessoa tem um cartucho implantado no seu sistema nervoso central, que atua como um receptáculo de sua consciência. A tecnologia registra todas as memórias, habilidades e cognição, ou seja, todos os impulsos neurais que tornam você “você”.

Com a invenção, o corpo humano passa a ter apenas um papel utilitário, uma “capa” a ser usada.

Apesar da tecnologia dos cartuchos ser implementada de forma gratuita em todos os cidadãos do Protetorado quando completam seu primeiro ano de idade, apenas os realmente ricos conseguem usufruir de suas ilimitadas possibilidades e prolongar sua vida indefinidamente. Para a maior parte da população, na prática os cartuchos não passam de um instrumento de vigilância e controle do governo, ainda que acreditem no sonho da imortalidade.

Neste contexto, o controle passa a ser aplicado pelo governo e grandes corporações de forma capilar, na vida cotidiana dos indivíduos da infância à morte, um fenômeno previsto pelo filósofo francês Michel Foucault, em Vigiar e Punir e Microfísica do Poder.

A profusão de temas em Altered Carbon é riquíssima, e passa por todas as esferas da existência humana, ao abordar questões sociais, biológicas, psíquicas, espirituais, políticas, éticas, legais… a lista não tem fim.

O universo do livro e da série é cuidadosamente criado e permite uma miríade de análises. Nesta crítica, o foco será na discussão do papel da mortalidade para a raça humana e as consequências da imortalidade conquistada na distopia da série, trazendo a explicação de alguns conceitos filosóficos abordados na obra.

 

O Niilismo Cyberpunk

 

O gênero cyberpunk pode ser definido como obras de ficção científica ambientadas em sociedades urbanas futurísticas dominadas pela tecnologia. Nestes mundos, o que impera é o contraste entre o avanço da tecnologia e o retrocesso nas condições de vida. O sonho do desenvolvimento tecnológico que traria melhores condições sociais e distribuição da riqueza é sobrepujado pelas desigualdades sociais provocadas por grandes corporações que visam o lucro acima de tudo.

Uma das obras precursoras do gênero foi Neuromancer (1984), de William Gibson, inspirada pela cultura punk e o início do movimento hacker. No livro, a maior parte da ação se dá no ciberespaço (termo usado pela primeira vez no livro), em um ambiente virtual que inspirou fortemente o filme Matrix, das Irmãs Wachowski. A conexão entre o cérebro humano e sistemas virtuais geralmente são muito explorados neste gênero.

É possível notar, no entanto, como o gênero traz uma visão de futuro carregada de niilismo e depressão. Podemos perceber essa pegada nos expoentes deste estilo, em filmes como Blade Runner e Matrix, mangás como Ghost in the Shell, e jogos como Shadowrun.

Em Altered Carbon não é diferente. O desenvolvimento tecnológico, que permitiu à humanidade se tornar uma raça interplanetária, não só não foi capaz de gerar uma sociedade justa e igualitária, como falhou em trazer conforto espiritual e responder às grandes questões da humanidade, como de onde viemos e para onde vamos.

Nas narrativas cyberpunk, os protagonistas costumam ser seres solitários, individualistas e alienados da sociedade como um todo. Nestes universos, o avanço da tecnologia tende a gerar uma sensação de desamparo e desesperança diante do mundo, enquanto conceitos como “alma”, “céu e inferno”, e “Deus” se tornam cada vez mais irrelevantes.

Quando a tecnologia passa a permitir ao homem atos e criações anteriormente conferidas apenas a deuses, não haveria mais necessidade e espaço para a espiritualidade.

 

 

Em Altered Carbon a evolução tecnológica permitiu aos seres humanos a criação de alternativas a almas (através dos cartuchos corticais), a paraísos e infernos (através das realidades virtuais) e a deuses, na figura dos “Matusas”: milionários que vivem ilimitadamente ao transferirem sua consciência sequencialmente para clones de seus corpos produzidos artificialmente. O termo faz referência à figura bíblica Matusalém, que teria vivido por quase mil anos.

No entanto, em Altered Carbon temos um contraste neste ponto. Apesar de na série a tecnologia ter permitido ao homem virar seu próprio Deus, a religião e espiritualidade não desaparecem. Isto é refletido na figura dos neo-católicos, pessoas religiosas que acreditam que o upload da consciência em outro corpo seria uma heresia, condenada ao sofrimento eterno no inferno. Por isso, incluem um código em seus cartuchos que os impedem de serem “reencapados” (termo usado no universo da série para a troca de corpos).

 

A imortalidade na mitologia de Altered Carbon

 

Altered Carbon se passa no ano de 2.384, onde os seres humanos já desbravaram e colonizaram outros planetas, e a morte não é mais uma das únicas certezas da vida.

Com a invenção dos cartuchos corticais, os mais abastados financeiramente tem a possibilidade de comprar novas “capas” ou criar clones de seus corpos para transferir seus cartuchos e viver eternamente.

Na mitologia da série, no entanto, os cartuchos não foram inventados inicialmente para esta finalidade. Como o material que os compõe foi deixado na Terra por uma civilização alienígena, junto a mapas de outros planetas habitáveis na galáxia, os cartuchos foram criados para permitir a viagem interestelar, como um forma de chegar mais rápido a estes planetas. Bastaria fazer o download de sua consciência através do cartucho para transmiti-la a um novo corpo que estaria esperando em um outro planeta. Uma espécie de teletransporte.

A transmissão do conteúdo dos cartuchos através de ondas de rádio possibilitou, inclusive, tirar férias em outros planetas, ou até em outros corpos.

Com o passar do tempo, a tecnologia acabou sendo usada por milionários como um método de imortalidade, trocando periodicamente de corpo, ou “capa”. Para os menos afortunados, sem condições financeiras de bancar novas “capas”, restariam duas opções: cessar sua consciência e ter seu cartucho guardado eternamente em um depósito (uma espécie de hibernação), ou acordar em uma realidade virtual, bancada por sua família ou amigos para que possam se “plugar” e visitá-lo para matar as saudades.

A única forma de se morrer permanentemente seria tendo seu cartucho destruído sem possuir um back-up dele na “nuvem”. Importante ressaltar que este processo de back-up seria caríssimo, novamente algo que apenas os mais ricos conseguiriam bancar. E, entre os mais religiosos, existe também a opção de codificar seus cartuchos para que não possam ser “reencapados”.

 

 

Podemos dizer, portanto, que a possibilidade de imortalidade existe. Ainda que seja restrita à condição financeira. Neste contexto, os 0.000001% mais abastados da população, que conseguiram criar infinitos clones de si mesmos para viver eternamente, são chamados de “Matusas” ou “Meths”.

Apesar de todos os cartuchos serem iguais, os corpos ou “capas” não são. Os mais ricos conseguem criar infinitos clones de si mesmos, espalhados em lugares seguros através da galáxia, mas a maior parte das pessoas ao morrer não tem condições de escolher qual será o seu novo corpo. Elas apenas recebem o próximo corpo disponibilizado pelo governo. Afinal, ao morrer seu corpo não é mais sua propriedade, mas sim do Protetorado. Com isso, uma criança pode ser “reencapada” no corpo de um idoso ou alguém acabar em um corpo de uma raça ou sexo diferente.

Chegamos enfim à figura mais instigante de Altered Carbon: Quellcrist Falconer. A personagem, interpretada por Renée Elise Goldsberry, não só é uma figura feminina e negra em uma posição de liderança, como seu arco – ainda que bastante curto na série – traz uma das questões filosóficas e morais mais interessantes da obra.

 

Altered Carbon - Quellcrist Falconer

 

Quellcrist é a líder dos Emissários, grupo que luta contra o Protetorado pelo fim da imortalidade. O que deixa tudo mais interessante é fato de Quellcrist Falconer ter sido a criadora da tecnologia do primeiro cartucho, que tornou a imortalidade possível em primeiro lugar. Ao perceber as consequências de sua criação, cria e treina o grupo dos Emissários, dedicando sua vida a esta causa. Quellcrist consegue prever que sua criação só geraria maior desigualdade entre a população e daria poder ilimitado aos mais ricos, vindo a provocar, em última instância, a aniquilação da humanidade.

Seu plano consistia em corromper de forma permanente o código dos cartuchos de todos os serem humanos, tornando impossível que a mente de alguém sobrevivesse por mais de 100 anos. Seu plano falha ao ser sabotado por Rei (Dichen Lachman), irmã de Takeshi, que mata Quellcrist e a maior parte dos Emissários na Batalha de Stronghold. Ironicamente, Rei acaba revelando que fez um back-up da consciência de Quellcrist, a escondendo em algum lugar da galáxia.

 

Heroísmo e a Negação da Morte

 

Em Altered Carbon, assim como em outras obras que abordam a questão da imortalidade, a morte é tida como um problema a ser superado. Afinal, esta seria a limitação final da raça humana.

No entanto, a definição do que algo é (ou do que não é) vem exatamente de seus limites. Até onde vai o céu e onde começa a terra? No limite do horizonte. Sem esta fronteira, existiriam céu e terra?

A mortalidade, exatamente por delimitar a existência humana, é portanto o que nos confere a humanidade em si. Não obstante, levantamos de nossas camas todos os dias motivados a trabalhar e fazer outras atividades como fôssemos viver para a sempre. Se lembrássemos a todo momento que somos mortais e que em algum momento seremos privados de nossa existência, será que continuaríamos fazendo as coisas da mesma forma?

Viver esquecendo que a morte existe, além de nos liberar de um sentimento extremo de ansiedade e estresse, faz com que construamos coisas pensando no futuro e nas próximas gerações.

Essa é a premissa básica de Ernest Becker em seu livro A Negação da Morte, vencedor do prêmio Pullitzer em 1974. Na defesa de Becker, a negação da morte é a negação de que o tempo irá acabar. Desta forma, nos comportamos de forma bastante diferente da que nos comportaríamos se considerássemos nosso tempo escasso e nossa existência de curta duração, o que poderia inclusive ser bastante caótico para a humanidade.

Para o autor, a civilização humana como um todo seria uma mecanismo de defesa simbólico de nossa raça contra a consciência de nossa própria mortalidade. Uma espécie de “instinto de sobrevivência” coletivo e sofisticado

E a nível individual, cada um de nós criaria uma espécie de projeto próprio de imortalidade. Esse projeto consistiria em uma vida heróica, no sentido de que o indivíduo se sentiria parte de algo eterno.

Como diria General Maximus, em Gladiador: “o que fazemos na vida, ecoa na eternidade”.

 

 

O “projeto de imortalidade”, ao qual Ernest Becker faz referência ao longo de sua obra, é algo que construímos de forma simbólica através de nossos atos, e do que deixamos para o mundo e para as próximas gerações. É o que chamamos de “significado” ou “propósito”.

Em Altered Carbon, entretanto, o “projeto de imortalidade” é construído de forma literal, já que a vida eterna é realmente uma possibilidade. Esse projeto consiste em acumular riquezas para ser capaz de comprar novas capas a cada morte de seu corpo momentâneo.

Na mitologia da série, não existiria mais a urgência de uma vida heróica, já que não haveria a necessidade de manter seu nome vivo para as próximas gerações através de feitos e conquistas. Seu nome pode ser mantido vivo de forma literal.

Os “Matusas”, por serem os detentores exclusivos de um real “projeto de imortalidade”, não têm necessidade de levar esta vida heróica, dotada de significado ou propósito. Se limitam portanto a viver uma ciranda hedonista de festas e prazeres.

A revolta de Quellcrist e dos Emissários, neste contexto, ganha uma nova camada de significado. O heroísmo dos rebeldes visa como “projeto de imortalidade” acabar com a imortalidade em si. E assim imortalizar seus nomes na história da humanidade. Holy shit!

 

Teremos uma segunda temporada de Altered Carbon?

 

Ainda que nesta resenha tenhamos focado na questão da imortalidade para a raça humana, é inegável a quantidade de outros temas e teorias que podem ser analisados a partir da mitologia de Altered Carbon. É uma série que passa por questões profundas da existência humana e por conta disso tem forte potencial para próximas temporadas.

No entanto, por ter sido uma das série mais caras da Netflix até o momento, é possível que demoremos a ver uma possível segunda temporada de Altered Carbon. Principalmente considerando que a primeira temporada começou a ser produzida em janeiro de 2016 e levou dois anos para chegar até nós.

Apesar de Laeta Kalogridis, criador da série, ter se pronunciado de que não possui o roteiro de uma segunda temporada pronto, demonstrou ter interesse em continuar a série. A boa notícia é que a obra original de Richard K. Morgan consiste em uma trilogia, sendo Altered Carbon (Carbono Alterado) o título do primeiro livro, que é seguido por Broken Angels (Anjos Partidos) e Woken Furies (ainda não lançado no Brasil).

Kalogridis também já deixou claro que sua intenção é de que a segunda temporada de Altered Carbon não se passe na cidade de Bay City, mas em algum outro lugar da galáxia. O segundo livro da trilogia realmente se passa em outro planeta, onde o personagem principal, Takeshi, habita um corpo diferente.

Seria realmente muito interessante conhecer outros cantos da galáxia habitados pela raça humana e como a vida se daria em outros planetas.

 

E você, qual sua aposta sobre a próxima temporada de Altered Carbon? Tem alguma explicação que não foi abordada neste artigo? Escreva abaixo nos comentários!

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Marcos Malagris

Publicitário, professor de marketing digital e Psicólogo, gasta seu escasso tempo livre navegando na Interwebz, consumindo nerdices e contemplando a efemeridade da existência. Me siga no Twitter ou no Facebook!

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