Metalhead | Robôs, Design Ontológico e o fim da humanidade [Explicação]

Metalhead é um thriller sobre a sobrevivência humana no limite da evolução tecnológica: o momento em que as máquinas enfim adquiriram inteligência e recursos suficientes para nos exterminar.

A narrativa acompanha uma mulher chamada Bella (Maxine Peake) em uma missão suicida para recuperar algo que só é revelado na última cena do episódio, com a ajuda de dois amigos, Clarke (Jake Davies) e Anthony (Clint Dyer).

A partir daí, o que se segue é uma implacável perseguição, que deixa o espectador vidrado do início ao fim. O episódio é tão tenso e imersivo, que seus apenas 41 minutos (incluindo os créditos) são a duração ideal.

Metalhead já é uma obra de arte por si só, considerando a estética do episódio e a impressionante atuação de Maxine Peake. No entanto, para os que buscam algo mais que simplesmente se entregar ao espetáculo visual e tensão do thriller, existe diversas perguntas que ficam em aberto e trataremos de algumas delas nessa resenha.

Como um bom episódio de Black Mirror, Metalhead nos dá muito o que pensar. Só que dessa vez, os ganchos não estão tão explicítos. Precisamos nos perguntar: como o mundo chegou a esse ponto?

 

O mundo das máquinas

 

Black Mirror - Metalhead - Mundo das Máquinas

 

O episódio já começa nos causando desconforto. A imagem em preto e branco com alto contraste, quase metálica, nos deixa claro que este não é o mundo como estamos acostumados.

O carro passa pela zona rural escocesa, em um cenário outrora povoado, mas agora desértico. Os personagens discutem sobre os porcos que habitavam as fazendas, mas foram mortos pelos “cães”. Claramente não é mais o nosso mundo. É o mundo das máquinas.

David Slade, diretor do episódio, declarou em entrevistas que a estética em preto e branco tinha como principal objetivo dar uma ambientação similiar a dos antigos filmes de horror. Além disso, confessou que filmar sem cores ajudou a computação gráfica usada nos robôs caninos a se mesclar melhor com a paisagem, certificando-se que os movimentos das máquinas não ficassem irrealistas demais.

A escolha foi feliz, e certamente um dos grandes acertos do episódio, ao rapidamente causar um estranhamento e nos ambientar neste mundo alienígena a nós. Nossos simbolismos e o que nos faz humano, como a cor de nosso sangue, já não importa. O protagonismo no planeta agora não é mais nosso.

Isto fica óbvio no explícito contraste entre as interações dos humanos em comparação às interações dos robôs com a tecnologia. Enquanto Clarke precisa com muito esforço hackear um carro para usá-lo, o cão robô o faz de forma bastante rápida, simplesmente se conectando através de algum tipo de entrada USB. Enquanto Bella precisa saltar por cima do muro para se abrigar na mansão e usa suas melhores artimanhas para abrir uma porta, o robô não perde mais do que poucos segundos se conectar o portão e abri-lo.

Aparentemente criamos um mundo que pode ser muito mais facilmente navegado por uma máquina do que por humanos. Não parece uma realidade tão distante se considerarmos algumas dificuldades que já temos com a tecnologia atual.

Outro fator interessante nesta distopia é que ao passo que em muitos cenários pós-apocalípticos os mais ricos conseguem se proteger das consequências e ter uma vida mais digna, em Metalhead nos é sugerido que nem o topo da cadeia alimentar conseguiu escapar deste destino inevitável.

Afinal, na parte final do episódio Bella adentra uma mansão luxuosa e bem equipada, de proprietários claramente ricos. Apesar da situação privilegiada, estes também não conseguiram sobreviver.

Somos todos presas fáceis.

 

A origem dos cães robôs de Metalhead

 

Black Mirror - Episódio Metalhead - Cães Robôs

 

Mentes brilhantes como o físico e escritor Stephen Hawking, o fundador da Microsoft Bill Gates e o fundador da SpaceX e aspirante a desbravador de Marte Elon Musk já nos alertaram: a inteligência artificial pode sim se desenvolver ao ponto em que os humanos não conseguiriam mais controlá-la.

Stephen Hawking explicitamente declarou que “o sucesso em criar uma inteligência artificial seria a maior realização da raça humana, mas infelizmente também poderia ser a última”. O medo de Hawking não é infundado, e faz parte de nosso imaginário desde que a ideia de “robôs” começou a povoar as obras de ficção científica. Voltaremos a este tópico mais à frente neste review.

Em diversas entrevistas, Charlie Brooker afirmou que a ideia para Metalhead veio ao assistir vídeos da Boston Dynamics, empresa de engenharia robótica responsável pela construção de robôs avançados para fins militares, dotados de alta mobilidade e destreza. As pesquisas da Boston Dynamics são financiadas pela DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency), agência do Departamento de Defesa do governo federal dos Estados Unidos.

 

 

Apesar de Brooker ter revelado sua fonte de inspiração, não nos deu mais nenhuma pista sobre a origem dos cães robôs, deixando a nosso cargo imaginar como a situação chegou ao ponto do universo de Metalhead.

Uma das informações mais interessante sobre o episódio é que, nos rascunhos iniciais de Brooker, o cachorro robô estaria sendo controlado por um humano, do conforto do seu lar. Ainda que o criador da série não tenha explicado se esta situação se trataria de um jogo ou algo do tipo, afirmou que no roteiro este homem inclusive aproveitaria o momento em que o robô está hibernando, enquanto espera Bella descer da árvore, para levantar do sofá e dar um banho em seu filho.

Um contraste incrível para mostrar como podemos ser cruéis quando usamos a tecnologia para mediar nossas relações. Não à toa, também é uma das críticas do episódio USS Callister, quando os tripulantes da nave se libertam do servidor privado de Daly e adentram o servido público na nuvem. Assim que se deparam com um jogador humano, são tratados de forma hostil e xingados gratuitamente.

No entanto, Brooker revelou que decidiu retirar esta cena do roteiro, pois a trama ficaria “óbvia demais”. O autor preferiu não deixar explícito uma explicação sobre como a situação teria chegado àquele nível, deixando esta parte aberta para o público.

Como a solução de roteiro de Brooker não foi utilizada em Metalhead, continuamos sem uma explicação. E aparentemente também podemos descartar a hipótese de uma espécie de super inteligência ou rede neural artificial, como a Skynet, do universo de Exterminador do Futuro. Afinal, os cães robôs não se comunicam entre si, apenas conseguem transmitir informações através do disparo de dispositivos localizadores.

Tudo leva a crer, portanto, que os cachorros robôs simplesmente foram uma tecnologia que deu muito errado e saiu de nosso controle, dado que eles estão repletos de funcionalidades muito comuns a aparelhos pessoais, como celulares e computadores: o “modo avião”, a localização por GPS, e o que parece ser algum tipo de recarregamento de bateria wireless ou por luz solar.

E não faltam ideias de como as coisas poderiam ter dado errado e saído de nosso controle.

Amazon, por exemplo, está a algum tempo testando a entrega de encomendas através de drones automatizados. No entanto, seria muito possível que começassem a surgir “piratas”, pessoas que abateriam os drones ou outras possíveis tecnologias de entregas automatizadas para roubar as encomendas.

 

Drones de entrega da Amazon

 

Não é difícil perceber que é psicologicamente muito mais fácil roubar um ser sem consciência, em uma ação que não traz nenhum risco a uma vida humana, apenas um pequeno estrago financeiro a uma corporação bilionária, do que cometer um crime que envolva a segurança de uma pessoa de verdade. Um trabalhador como nós mesmos.

Diante deste cenário, a Amazon poderia desenvolver (ou contratar de terceiros) robôs para defender e escoltar suas entregas. Estes drones de escolta, por sua vez, possivelmente possuiriam armas para proteger a entrega.

Daí a tudo descambar para um apocalipse robótico como em Metalhead, é só um passo.

 

Vale da Estranheza

 

Peça RUR - Robôs matando humanos

 

Voltemos então à figura dos “robôs”, e de como eles começaram a povoar nosso imaginário e obras de ficção científica. Apesar do conceito de “robô” como conhecemos ter aparecido pela primeira vez em 1920 na peça Tcheca R.U.R. (Rossum’s Universal Robots), o fascínio por servos e companheiros criados artificialmente figuram desde as lendas antigas da mitologia grega. Um dos primeiros exemplos é a história de Cadmo, herói grego que teria criado soldados por conta própria ao semear dentes de dragão. Temos também a história de Pigmaleão e sua estátua que ganhou vida, Galathea.

A ideia de criar formas de vida à nossa semelhança sempre nos fascinou. É o estágio máximo da inventividade humana: desenvolver uma habilidade que até então seria exclusiva dos deuses.

Muito se discute sobre a criação de robôs com aparência humana, e as opiniões são bastante conflitantes. Existe um fascínio por criações robóticas quase indistinguíveis de seres humanos reais, como no episódio Be Right Back da segunda temporada, em que Martha “clona” seu marido Ash, morto em um acidente de carro.

No entanto, existe uma hipótese no campo da robótica chamada “Vale da Estranheza”, criada por Masahiro Mori, em 1970.

 

Gráfico - Vale da Estranheza

 

Mori teoriza que à medida em que a aparência dos robô gradualmente fica mais parecida com a humana, nossa resposta emocional se torna mais positiva e empática, até cruzar um limiar em que esta resposta emocional se torna uma forte repulsa. Conforme a evolução no desenvolvimento dessa aparência humana avança, já se tornando realmente indistinguível de um ser humano real, nossa resposta emocional se torna positiva novamente, tendendo ao nível normal de empatia entre dois seres humanos reais.

 

Vale da Estranheza - comparação entre robosQual dos robôs lhe causa maior estranheza?

 

Diante da hipótese do Vale da Estranheza, realmente a criação de robôs guardas humanóides poderia causar desconforto dentre a população no universo de Metalhead, o que explicaria terem recorrido à imagem de cachorros. E realmente há algo bem Black Mirror em se inspirar no melhor amigo do homem para se criar uma arma assassina. 

 

Somos meros hospedeiros da evolução tecnológica?

 

Boston Dynamics - Dog vs dog

 

Por que criar algo com o poder de matar a nós mesmos e exterminar a humanidade? Simples, porque somos capazes.

De alguma forma, o ímpeto da criação parece mais forte que o próprio ser humano. Se algo pode ser criado, ele irá ser criado por alguém em algum lugar do planeta. Inventamos gases letais, tecnologia de clonagem, bombas nucleares e até coisas sem o menor propósito, como um fidget spinner. É uma mistura de curiosidade sobre o que somos capazes de fazer com a adrenalina do desafio, muitas vezes acima de qualquer ética e moral.

É quase como se já fossemos controlados pela tecnologia desde o homem paleolítico e o desenvolvimento das primeiras ferramentas primitivas a partir de lascas de pedras. Apesar de terem se passado centenas de milhares de anos entre estas criações primitivas e as pesquisas com inteligência artificial, na linha do tempo de existência de um universo de bilhões de anos, foi só um pulo.

Podemos traçar um paralelo entre essa teoria dos seres humanos como meros hospedeiros do “vírus” do avanço tecnológico desenfreado com outros animais na natureza. Existem diversos parasitas que tomam controle da “mente” de insetos e influenciam o comportamento de seus hospedeiros, objetivando sua própria sobrevivência.

Em seu TED Talk, Dan Dennett nos conta a história de um tipo de formiga que pode ter seu sistema nervoso infectado por um tipo de Nematelminto (invertebrados que medem entre 1mm e 50cm), e perde o controle de seu comportamento. Uma vez infectada, a formiga começa a se comportar de forma estranha e a subir em plantas. Se cair, a formiga faz todo o trajeto e sob novamente, até conseguir finalmente chegar ao topo.

Mas qual o objetivo desse comportamento? Lá, no topo da planta, o parasita se transporta até o abdômen da formiga, que começa a inchar e faz seu corpo ficar parecido com um pequeno fruto. Isto atrai os pássaros que comem este tipo de fruto, que não coincidentemente tem um aparelho digestivo que é o ambiente ideal para a próxima evolução deste parasita. Este tipo de pássaro não come insetos, apenas pequenas frutas, e o parasita evoluiu para superar este “detalhe”.

 

 

Será possível que sejamos meros hospedeiros do “vírus” da tecnologia? Que passa de pessoa para pessoa e passa por mutações, evoluindo cada vez mais, até que não precisem mais de nós para evoluir? A inteligência artificial seria exatamente isso. Um nível de evolução tão grande, que as próprias máquinas podem criar novas máquinas e tecnologias.

Em Metalhead, os cachorros robôs deixam isso bem claro. Aparentemente não precisam mais de nós, e por isso nos perseguem até que estejamos mortos e não ofereçamos qualquer tipo de ameaça a sua sobrevivência e evolução.

Ironicamente, a missão de Bella no episódio é uma luta em vão pelo inevitável futuro que aguarda a humanidade, tentando se agarrar aos símbolos do que nos torna humanos, como por exemplo a compaixão ou fazer o bem por alguém. E aí somos apresentados à alegoria de toda uma missão suicida apenas para levar conforto a uma criança através de um ursinho de brinquedo.

O suicídio de Bella ao final de Metalhead é a realização e a aceitação de que não é mais possível resistir. As máquinas venceram e qualquer resistência é inútil.

 

Design Ontológico e o último aviso de Black Mirror

 

Black Mirror - Metalhead

 

Não é necessário ser um grande fã para entender sobre o que é a série. Black Mirror é sobre a nossa relação com a tecnologia e como ela pode transformar nossa sociedade e nossas interações pessoais. Ou seja, o design ontológico.

“Nós desenhamos nosso mundo, enquanto nosso mundo age de volta e redesenha nós mesmos”. A frase da designer e escritora Anne-Marie Willis é a definição de design ontológico e traduz perfeitamente o espírito da série.

Todas as tecnologias que criamos em algum momento vão atuar novamente sobre nós mesmos, modificando quem somos e como nos relacionamos com nossos iguais e com o mundo.

Nós criamos os celulares, por exemplo, e eles atuaram sobre a gente, diminuindo nossa capacidade de concentração e até a curvatura das nossas colunas.

 

Escher - Mãos desenhandoDrawing hands – arte de M. C. Escher

 

Metalhead joga isso na nossa cara da forma mais explícita e apocalíptica possível. É o aviso final de Black Mirror: se vocês não entenderam até agora os riscos da tecnologia e como devemos ser conscientes e éticos em nossas criações, vamos mostrar até onde isso tudo pode chegar.

Apesar de contar apenas a história de Bella, Clarke e Anthony (e o triste fim do casal morador da mansão), o episódio nos dá atender que naquele universo a humanidade não tem a menor chance contra o avanço implacável da tecnologia.

Finalmente fomos longe demais.

 

Bônus: casal morto na mansão e o easter egg de San Junipero

 

Black Mirror - Metalhead - Cartão Postal San Junipero

 

Como somos muito fãs do episódio San Junipero, da terceira temporada, não poderíamos deixar esse easter egg de fora da nossa resenha.

Assim que Bella invade a mansão abandonada, a câmera nos mostra algumas correspondências em cima da mesa. Dentre elas, podemos notar um cartão postal de San Junipero, o que nos mostra que a tecnologia de upload de consciência, da empresa TCKR Systems, já era uma realidade na narrativa de Metalhead.

Posteriormente, ao subir as escadas, Bella se depara com os corpos de um casal na cama do quarto. Os corpos estão com uma arma nas mãos e temos manchas de sangue na cabeceira da cama, indicando um possível suicídio diante do percepção de uma morte inevitável pelos cães.

 

 

No entanto, a se julgar pelo cartão de San Junipero, será que este casal não se suicidou, mas conseguiu fazer o upload de suas consciências no sistema da TCKR antes de serem mortos pelos cães?

Seria bastante irônico se o último recurso da humanidade, diante se seu iminente extermínio, fosse a fuga para San Junipero, fazendo o upload de sua consciência para viver eternamente no servidor de uma máquina, enquanto as máquinas dominassem e passassem a povoar o mundo real. Uma verdadeira inversão dos dois mundos.

 

 

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Marcos Malagris

Publicitário, professor de marketing digital e Psicólogo, gasta seu escasso tempo livre navegando na Interwebz, consumindo nerdices e contemplando a efemeridade da existência. Me siga no Twitter ou no Facebook!

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