Sharp Objects | Trauma, culpa e escuridão na nova minissérie da HBO [Sem Spoilers!]

E quando seu trabalho te obriga a encarar escuridão que habita em você? Essa é a trajetória de Camille Preaker, personagem de Amy Adams em Sharp Objects. Escalada para cobrir um assassinato em sua cidade natal, a jornalista é levada a confrontar seus próprios demônios e os traumas de seu passado.

A série, traduzida pela HBO como “Objetos Cortantes”, é uma adaptação do livro homônimo de Gillian Flynn, também autora de Garota Exemplar (Gone Girl). A princípio, a ideia seria rodar a adaptação como um filme, mas Marti Noxon, roteirista de Mad Men que comandou a adaptação, conseguiu transformar o projeto em uma minissérie de 8 episódios. Segundo Noxon, a personagem precisava de mais espaço para ter sua evolução contada.

E se você ainda não está convencido de que vale a pena assistir, saiba que Sharp Objects é dirigida por Jean-Marc Vallée, responsável pela incrível Big Little Lies e o premiado filme Clube de Compras Dallas. A HBO realmente vem mostrando que não trabalha apenas com séries de primeira linha no gênero fantasia, como Game of Thrones e Westworld, mas também traz verdadeiras obras de arte atuais, como nos acertos recentemente em True Detective e mesmo Big Little Lies.

Chegamos portanto a Wind Gap, Missouri, onde se passa a trama de Sharp Objects. Ainda que de fato exista uma cidade chamada Wind Gap na Pensilvânia, a localidade criada por Gillian Flynn é totalmente fictícia. Mas não por isso, inverossímil. A cidade natal de Camille Preaker (Amy Adams) é a típica cidadezinha americana do interior onde todos se conhecem e as pessoas ficam marcadas pelos estigmas de sua infância.

 

sharp objects - wind gap

 

A polícia de Wind Gap, ainda que bem-intencionada, é incapaz de lidar com a recente onda de assassinatos de adolescentes que já abateu duas garotas e instaurou medo e desconfiança entre seus habitantes. O xerife Bill Vickery (Matt Craven) e o detetive de Kansas City, Richard Willis (Chris Messina), são os responsáveis pelas investigações.

Enquanto as buscas avançam, Camille Preaker é designada por Frank Curry (Miguel Sandoval), editor-chefe do jornal St. Louis Chronicle, para cobrir a história, aproveitando-se de sua conexão especial com sua cidade natal e seu conhecimento das figuras pitorescas da cidade.

Camille, no entanto, reluta para aceitar o convite, pois sabe que acabará se confrontando com os demônios de seu passado em Wind Gap. Mas Frank, apesar de nutrir algum tipo de afeição paterna por Camille, não está aberto a negociações.

Antes mesmo de sua volta a Wind Gap, somos tragados pela escuridão que habita na repórter, que transparece por meio de seu alcoolismo, alucinações e comportamento de automutilação, o que chegou a levá-la à internação.

 

Um mergulho em traumas do passado

sharp objects - camille preaker e adora crellin

 

Não há dúvidas de que este papel é um presente para Amy Adams, que tem a chance de provar que está no hall de melhores atrizes da atualidade e merece ter acumulado suas cinco indicações ao Oscar. Outro nome considerado para interpretar a protagonista foi Jessica Chastain (A Hora Mais Escura).

Assim como Cora Tanetti, personagem de Jessica Biel na série The Sinner, a complexidade de Camille Preaker e sua relação com a família é um prato cheio para qualquer psicanalista. E isso é algo que Sharp Objects consegue explorar muito bem.

Em seu retorno a Wind Gap, os flashbacks da infância de Preaker, interpretados pela atriz mirim Sophia Lillis (It: a Coisa), sugerem um forte trauma ainda não revelado, mas que provavelmente irá ser desvendado ao longo da série. Até lá, vamos sendo apresentados à figura de sua mãe, Adora (Patricia Clarkson), e entendemos melhor alguns dos comportamentos de Camille Preaker.

Adora é uma socialite acostumada a uma vida de privilégios em Wind Gap. Mimada e narcisista, acha que o mundo gira em torno de si e que tudo é sempre sobre ela. Por isso considera a chegada de Camille para escrever uma matéria sobre os assassinatos na cidade uma ofensa ao nome da família, que tanto preza em defender. Rapidamente notamos o comportamento controlador e repressor de Adora com suas filhas, que parece ter se intensificado com a morte da filha de seu segundo casamento, Marian Crellin (Lulu Wilson).

Adora sempre deixou clara sua preferência por Marian, já que Camille a lembrava demais seu ex-marido.

Mas Camille tem mais uma meia-irmã, Amma Crellin (Eliza Scanlen). Por ser bem mais nova, parece ter sido uma forma de Adora lidar com a ausência de suas duas filhas anteriores, já que Marian faleceu e Camille se mudou para a “cidade grande”. Na trama de Sharp Objects, Amma tem aproximadamente a idade de Marian, quando esta faleceu.

 

amma sharp objects

 

A morte de Marian parece ter sido um divisor de águas na vida da família. Enquanto a reação de Adora parece ser uma espécie de negação, mantendo o quarto de Marian impecável e intocado, a de Camille passa a ser a de autopunição, marcando palavras em seu corpo com objetos cortantes.

Nesta nova estrutura familiar, temos uma enorme similaridade com as personagens de The Sinner, com uma mãe que introjeta culpa nas filhas, um pai ausente, uma filha tomada pela culpa e outra por impulsos imprudentes. Ou seja, um prato cheio para a psicanálise.

Ainda que esta dinâmica seja extremamente prejudicial para a psiquê de Camille, seu editor-chefe parece acreditar que ela precisa encarar os fantasmas de seu passado, o que nos faz pensar que Frank Curry talvez saiba mais do que aparenta. Curry parece atuar como uma espécie de mentor ou figura paterna para Camille, e suas constantes ligações para checar o andamento das matérias parecem disfarçar sua real intenção de acompanhar seu estado emocional.

A evolução de Camille Preaker realmente parece ser o objetivo central de Sharp Objects. Gillian Flynn revelou em entrevistas que sua intenção era escrever um estudo de personagem sobre Camille, mas por achar que ninguém se interessaria em ler um livro sobre raiva e violência, através de três gerações de mulheres, camuflou estas temáticas em meio a uma história de investigação e mistério.

Flynn brinca que esta foi a maneira de “enganar” as pessoas para que lessem sobre estes temas.

 

Um drama liderado e focado em mulheres

sharp objects - camille preaker adora crellin e amma crellin

 

Estamos vivendo uma onda de obras incríveis lideradas por mulheres, como The Handmaid’s Tale e a já citada Big Little Lies. Sharp Objects vem nessa mesma pegada: melancólica, profunda, poética e com roteiro e atuações impecáveis.

Ainda que as duas primeiras tragam dramas essencialmente ligados ao feminino, Sharp Objects se diferencia ao trazer uma personagem forte, mas atormentada por questões existenciais, vícios e traumas do passado. Características que compõem um papel de anti-herói atormentado, geralmente reservado a protagonistas masculinos, como por exemplo Rust Cohle, personagem de Matthew McConaughey em True Detective.

Casey Bloys, diretor de programação da HBO, afirmou em entrevistas que não conseguiria pensar em uma protagonista feminina mais complicada que Camille Preaker: “existem célebres protagonistas masculinos com tendências autodestrutivas por aí, mas será realmente interessante ver uma mulher lutando contra seus demônios”.

Outro ponto interessante a ser ressaltado nessa onda de séries lideradas e focadas em mulheres é ver atrizes extremamente talentosas acima dos 35 – como Elizabeth Moss e Jessica Biel, dos 40 – como Reese Witherspoon e Amy Adams, e até dos 50 anos – como Nicole Kidman e Laura Dern – com espaço para desenvolver personagens complexas em mais tempo de tela do que um longa nos cinemas poderia oferecer.

Infelizmente (ou felizmente), Casey Bloys já afirmou que a segunda temporada de Sharp Objects não irá acontecer. Ainda que o fato da minissérie encerrar integralmente a trama do livro não queira dizer nada, considerando que Big Little Lies e The Handmaid’s Tale foram renovadas para temporadas que extrapolam seus livros, Amy Adams já declarou que não tem intenção de voltar a viver Camille Preaker, pelo processo desgastante de retratar uma personagem com questões tão pesadas.

Sorte a nossa. O formato de minissérie tem sido bem-sucedido em contar histórias que possuem um pouco mais de fôlego, mas precisam contar com um encerramento claro, dramático e bem definido.

Que oito episódios sejam suficientes para que Camille Preaker vença seus demônios.

 

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Marcos Malagris

Publicitário, professor de marketing digital e Psicólogo, gasta seu escasso tempo livre navegando na Interwebz, consumindo nerdices e contemplando a efemeridade da existência. Me siga no Twitter ou no Facebook!

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