Queer Eye | Heróis, negação e os armários de onde precisamos sair
É difícil sair do armário, qualquer que seja o seu armário. E é isso que Queer Eye nos mostra: todos temos questões a serem superadas na busca pela melhor versão de nós mesmos. Muitas vezes vivemos em negação e relutamos em abandonar nossas inseguranças e partir rumo a tornarmos quem somos de verdade. Nada melhor do que uma ajudinha de amigos dispostos a nos falar verdades e nos jogar para frente.
Queer Eye estreiou no Netflix no início de 2018 e trouxe uma nova abordagem para sua predecessora Queer Eye for the Straight Guy, de 2003. A nova versão abandona o “for the Straight Guy” (para o cara hétero) de seu título, afinal no quarto episódio, intitulado To Gay or Not Too Gay, o herói (como são chamados os homens que recebem a intervenção do programa) também é homossexual.
Em uma primeira camada, seus oito episódios abordam o preconceito e o machismo entranhado em todos nós, desconstruindo brilhantemente padrões sobre o que é ser homem de uma forma totalmente orgânica e natural. A simples existência dos personagens do Fab Five (ou Cinco Fabulosos), cada um com um perfil específico e uma forma de se portar, nos mostram que a homossexualidade foge de qualquer estereótipo e assume uma pluralidade de manifestações, como qualquer ser humano.
Nossas pré-definições sobre o que é ser homem nos foram culturalmente impostas e só fazem causar mal a nós mesmos, criando falsas expectativas de como devemos nos portar e culminando em sentimentos autodestrutivos, como raiva, frustração e depressão. Um documentário que vai na raiz deste problema é The Mask We Live In, também disponível no Netflix.
E não à toa a série se passa na Georgia, estado do sul dos Estados Unidos, ainda com fortes resquícios preconceituosos.
Já em uma camada mais profunda e emocionante, Queer Eye nos mostra que todos temos armários para sair. É muito comum vivermos em negação de nossa verdadeira essência e protelarmos as ações que nos fazem evoluir e atingir nosso potencial completo. Em cada um dos episódios podemos notar que os “heróis” vivem em algum tipo de negação, o que os mantém paralisados em uma zona de conforto. No entanto, basta uma rápida conversa inicial para perceber que estes homens sabem quem desejam se tornar, mas algo os congela. Talvez suas próprias percepções deturpadas sobre quem são ou do que são capazes.
É aí que entra o Fab Five, cada um com uma diferente especialidade.
Antoni Porowski é especialista em comida e vinho, mas sua postura empática e confortante consegue muitas vezes fazer com que os “heróis” exponham seu sentimentos. A comida tem esse efeito cultural, compartilhar uma refeição com alguém nos faz baixar nossas defesas e considerar o outro como igual. Bobby Berk, designer, com certeza possui as habilidades mais impressionantes, conseguindo em poucos dias fazer uma transformação completa na casa, materializando de forma externa a transformação interna pela qual os personagens precisam passar e mostrando que ainda que você esteja acostumado com o modo como as coisas parecem ser, sempre existe uma maneira de evoluir.
Jonathan Van Ness é o guru em cuidados pessoais, tendo um dos trabalhos mais difíceis: convencer homens que cuidar de sua barba, pele e cabelo não demanda tanto esforço e não os torna menos homens. Tendo disponíveis 5 minutos ou 1 hora, sempre é possível trabalhar para expor a sua melhor versão ao mundo. Tan France, moda, entende que estilo é algo pessoal e mesmo que existam roupas e cortes que funcionem melhor para determinadas pessoas, o mais importante é se sentir confortável e seguro. Karamo Brown é o responsável por cultura e atua como uma espécie de coach, tentando entender qual é o ponto nevrálgico para desencadear a mudança que precisa ser feita.
Enfim, especialidades que vão além do óbvio, e na prática se entrelaçam para trabalhar a confiança e a autoestima dos “transformados”.
A recusa ao chamado: relutância à mudança
Quantas vezes não permanecemos em nossa zona de conforto por medo ou por crenças falsas de que não somos capazes. Esta vida em negação de nossas potencialidades faz o tempo passar rápido, e o que sobra é o ressentimento. Vemos isso nos “heróis” em cada um dos episódios de Queer Eye.
E neste ponto, chamá-los de “heróis” é extremamente emblemático, se considerarmos a estrutura da Jornada do herói, de Joseph Campbell.
O antropólogo Joseph Campbell, em seu livro O Herói de Mil Faces, pesquisou e se aprofundou nos diversos mitos e histórias folclóricas contadas por diferentes povos ao redor do globo, desde grande obras culturais e as histórias das maiores religiões do planeta a desconhecidos mitos de pequenas tribos africanas mais “isoladas” do resto do mundo. O que encontrou foi uma estrutura muito similar na narrativa de todas estas histórias, que chamou de A Jornada do Herói, ou “monomito”.
Campbell dividiu esta estrutura em 3 atos e mapeou os 12 passos essenciais pelos quais todos os heróis precisariam passar para avançar em sua história. Analisando grandes obras cinematográficas, como Matrix, Star Wars, Avatar e basicamente qualquer um dos filmes da Disney, fica bastante claro o quanto a estrutura da Jornada do Herói está presente em nossa cultura.
Podemos notar como todos os episódios de Queer Eye seguem este mesmo modelo, em que os personagens principais são os heróis que irão passar pelos 3 atos e voltar a sua vida cotidiana transformados. O ponto crucial no programa é a participação do Fab Five, que atua como o mentor que irá ajudar os heróis a superarem sua relutância em evoluir na jornada.
Só que neste caso, a “jornada” nada mais é do que suas próprias vidas.
Os diferentes tipos de negação em Queer Eye
Ainda que todos os “transformados” tenham em comum o fato de estarem estagnados nesta fase de “recusa ao chamado”, esta evitação à mudança toma diferentes formas, mostrando-se sob diferentes tipos de “negação”.
No primeiro episódio, por exemplo, temos Tom Jack, um solitário motorista de caminhão com um coração de ouro. Tom ainda é apaixonado por sua ex-mulher Abby, mas acredita ser incapaz de conquistá-la, e fala o tempo todo a seus mentores “you can’t fix ugly”, sobre como não seria possível “consertar” a sua feiura. Tom é incrédulo na possibilidade real de uma mudança e nega a esperança, ao simplesmente aceitar que não existe a chance de reconquistar sua ex-mulher. Já no caso de Neal Reddy, empreendedor e desenvolvedor de origem indiana, sua negação é em relação a sua própria vulnerabilidade, e por isso evitar a aproximação e o contato físico com outras pessoas, vivendo cada vez mais como um ermitão.
No quarto episódio, temos A.J., que se define como “o cara gay mais hétero de Atlanta”. A.J. nega sua identidade como homem gay para sua madrasta, que passou a ser sua principal família após a morte de seu pai, mas para quem nunca assumiu sua homossexualidade. A uma primeira vista, este pode parecer um episódio sem grandes novidades, já que este é o tema principal da série, mas ele explora uma camada muito mais profunda, pois é sobre assumir para todos quem se é de verdade, além das expectativas e verdades impostas por seus pais. Já Bobby Camp, personagem do capítulo quatro, é o pai de seis filhos totalmente devoto à sua família, mas que nega a si próprio. Através de seu sacrifício, tenta prover o melhor para sua família, mas esquece que para ajudar aos outros precisamos estar em nossa melhor forma.
Nos episódios seis e sete, temos temáticas parecidas, pois tanto Remington, um jovem empreendedor que mora em uma casa herdada de sua vó, quanto Joe, um comediante Stand Up que ainda mora com seus pais, negam-se a crescer e se tornarem adultos. Remington ainda mora na “casa da vovó”, sem uma identidade própria, e adia a criação de sua empresa, enquanto Joe ainda vive em um quarto infantil na casa de seus pais e lhe falta a autoconfiança para entrar com tudo em sua carreira de comediante.
No entanto, em dois episódios específicos temos viradas bastante interessantes, onde a negação a ser superada não é exatamente a dos personagens que estão sendo ajudados. No episódio número três, temos o policia Cory, ex-militar e amante de corridas de carro. E o ponto mais delicado: eleitor do Trump. Os membros do Fab Five a princípio não conseguem disfarçar uma ponta de preconceito, mas ao longo do episódio conseguem entender que apesar de sua orientação política, Cory possa ser uma pessoa tolerante. Da mesma forma, no oitavo episódio, conhecemos um grupo de bombeiros (a epítome da heterossexualidade) e nos surpreendemos com o fato de que não demonstram em nenhum momento qualquer tipo de comportamento preconceituoso. Em ambos os episódios somos convidados a superar nossa visão estereotipada do que é um “típico homem hétero”.
Desta forma, em Queer Eye os personagens (e até nós mesmos) são convidados a vencer as limitações de seus “armários” e superar suas negações em busca de um crescimento pessoal. E esse é o poder da série, nos mostrar como muitas vezes negamos nosso próprio desenvolvimento e vivemos boa parte da vida sem assumir nossa verdadeira identidade.
Apesar de parecer simples, não é fácil nos tornarmos quem realmente somos.
Autorrealização e os armários de onde precisamos sair
“Torna-te quem tu és”, este é o conselho de Nietzsche em seu livro Ecce Homo. Simples, e no entanto uma de suas ideias mais profundas.
Com esta frase, o filósofo convida o leitor a deixar de iludir a si mesmo, escondendo-se e negando sua essência. Ao invés da negação, seria preciso dizer “sim” às forças que nos constituem e ir até o limite de nós mesmos, assumindo e transbordando nossa real personalidade. Só assim nos tornaríamos plenos e evitaríamos o ressentimento. Impossível não lembrar de Queer Eye.
O caso de A.J. é bastante emblemático nesse sentido. Apesar de assumir sua identidade entre os amigos, não tem coragem de se assumir para sua madrasta, que acaba sendo a última fronteira para conquistar a si mesmo. E a beleza da série é conseguir mostrar de forma sutil e poética o quanto isso é difícil. Só consigo imaginar.
De forma análoga às ideias de Nietzsche, temos na psicologia o conceito de autorrealização, termo muito usado pelas abordagens humanistas, principalmente por Carl Rogers. Em sua obra, o conceito se refere ao processo contínuo de evolução do conceito de si, através da reflexão e reinterpretação de suas experiências. Seria o que o permite ao sujeito se desenvolver e crescer enquanto pessoa. Este processo começaria na infância, quando a criança começa a aprender a diferenciar quem ela é e quem são os outros, mas ao longo da vida, a chave para a autorrealização seria a interação com o ambiente e principalmente em nossas relações pessoais mais significativas.
Desta forma começamos a entender nossos padrões e através dos outros reconhecemos a nós mesmos. Daí a importância em se assumir e estabelecer para os outros sua verdadeira identidade, ou seja, como você deseja ser visto. Se não batemos no peito e assumimos quem somos para o mundo, o mundo em troca não irá nos reconhecer e nos dar a validação que precisamos para construir nossa identidade.
E todos possuímos armários de onde precisamos sair. Seu armário pode ser revelar a sua real preferência sexual, mas também pode ser simplesmente defender seu sonho de seguir uma carreira que lhe traz felicidade, mesmo que não seja a imposta por seus pais.
Neste processo é essencial não só sermos sinceros com nós mesmos, mas também com o resto do mundo.
Felizmente já tivemos a notícia do Netflix sobre a renovação de Queer Eye para uma segunda temporada. O criador da série, David Collins, disse que poderemos esperar uma diversidade ainda maior entre os “heróis” e um aprofundamento ainda maior na temática da religião. Apesar dos episódios da próxima temporada já terem sido filmados, ainda não foi anunciada uma data de estreia.
Um brinde à diversidade e a autorrealização!
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Que massa! <3
Que texto maravilhoso!
Obrigado, Patrícia! =)
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Adorei que eles deram foco nas histórias e encontros para além dos makeovers, mas achei que vacilaram de terem estereotipado nerds de um jeito tão antiquado… Fizeram toda a temporada sobre quebrar conceitos antigos, daí pisaram na bola no último episódio…