Bacurau | Colonialismo, Coletividade e Empoderamento [Crítica com Spoilers]
Surge no horizonte Bacurau, um objeto não-identificado.
O novo longa dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles vem para mostrar o Brasil e o nordeste para o mundo. Ovacionado nos festivais, conquistou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, na França, Melhor Filme no Festival de Cinema de Munique, na Alemanha, e o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cine de Lima, no Peru.
Nas palavras dos diretores, um western brasileiro, que mistura aventura e ficção científica. Mas como pergunta a sulista no trailer do filme, “Bacurau é o quê que significa?“
Um trailer que chega com sintetizadores. Tensão, sertão. Ancora-se no mistério, mas já consegue nos passar a força do filme.
Você quer viver ou você quer morrer?
E na era dos spoilers e trailers que entregam toda a trama das obras, parece que o mistério é parte da experiência. O boca a boca tem papel essencial na estreia do filme, e a pergunta latente entre os que já assistiram é: “já viu Bacurau?”
Surpreendentemente, a pergunta não é acompanhada por nenhum tipo de spoiler. Uma empatia que não é comum aos tempos atuais, e parece que os que viram foram tão impactados pela experiência que querem que os outros passem também pelo processo catártico do filme. Talvez só assim seja possível tirar a lição.
Bacurau é poderoso, e vem para mostrar o Brasil não só para o mundo, mas para o próprio brasileiro. O filme que precisávamos em tempos tão difíceis e polarizados, que de forma corajosa fala sobre colonialismo, estereótipos, coletividade, empoderamento e preconceito. Se o nacionalismo está em baixa, o regionalismo mostra-se em alta. Em Bacurau, o coletivo é mais importante que qualquer personagem.
Por lá, as diferenças não são colocadas de lado, mas tampouco dificultam a vida em sociedade. É a cidade que se une para sobreviver, e aprende a respeitar seus integrantes.
Atenção! Os próximos tópicos desta crítica contêm spoilers de Bacurau! Se for, vá na paz!
Momento Político
Seguindo a linha de críticas sociais e lutas de classes dos filmes anteriores de Kleber Mendonça Filho, como O Som Ao Redor (2012) e Aquarius (2016), Bacurau vai ainda mais além em uma crítica política bastante explícita.
No início do filme, assistimos ao funeral de Carmelita (Lia de Itamaracá), matriarca da cidade. No discurso, o professor Plínio (Wilson Rabelo) nos fala que Carmelita – que no caso representa Bacurau em si – teve tudo quanto é filho. Médico, prostituta, michê, só não tem ladrão. Sua morte nos mostra o fim de uma era que aceitava a diversidade, e que dali para frente serão tempos difíceis.
São novos tempos em Bacurau, tempos de opressão e de armas, que vão exigir ainda mais união e confiança entre estes diferentes que buscam a vida em harmonia. Tempos opressivos, principalmente aos nordestinos, estereotipados como o povo ignorante, o povo que não sabe votar.
Mas o nordestino não é bobo. Sabe o que é drone, sabe ver que sua cidade sumiu do mapa, e sabe que só a união e a comunidade pode os salvar da opressão.
Na obra, os colonizadores vêm agora à colônia para jogar. Em um futuro não muito distante, a obra nos dá a entender que todo o entretenimento e exposição da sociedade do espetáculo já não é mais suficiente para divertir o primeiro mundo. É preciso participar da violência, para sentir-se vivo.
Os estrangeiros, liderados por Michael (Udo Kier), vem preparados para um massacre, mas não sem regras. Não admitem matar crianças e tem um sistema rigoroso de pontos.
Afinal, não são bárbaros.
Surpreendentemente, parece mais fácil aceitar a violência do colonizador, que vem preparado e equipado, do que a violência do colonizado, que luta com as armas que tem.
A Violência do Colonizado
Bacurau é violento, e trouxe naturalmente a comparação com cinema de Tarantino. Principalmente com Era Uma Vez em Hollywood (2019) tendo ido a cartaz na semana anterior. Mas em verdade, a violência de Bacurau é bastante diferente da violência de Tarantino, apesar de ambas influenciadas pelas obras westernianas. Bacurau traz um belo contraponto à violência delirante do “self-made man”, do colonizador. Por lá, temos sim violência, mas do colonizado.
A violência da defesa coletiva, da sobrevivência.
E que por isso pode ser muito mais gutural, e surpreendente. Estamos tão acostumados com a passividade e receptividade do povo brasileiro, que mesmo com o aviso no início do filme “Bacurau: se for, vá na paz”, ainda nos surpreendemos quando a cidade, violenta, defende-se.
É quase um chamado. Um manifesto de que é possível se impor e recorrer à violência para defender seus limites, mas sem perder a identidade. É bonita a cena em que Domingas, personagem de Sônia Braga, mostra a receptividade brasileira ao colonizador, oferecendo guisado e suco de caju. E até música americana, mostrando que o brasileiro gosta de agradar. O último aviso de um povo que aprendeu com os erros.
Mas a receptividade é rejeitada. A visita faz desfeita.
A receptividade também é rejeitada pelos forasteiros sulistas, interpretados por Karine Teles e Antonio Saboia. Cheiram a garrafa d’água antes de beber e puxam assunto com a altivez e prepotência do homem branco. Não reconhecem que quem nasce em Bacurau também é gente.
A soberba é tanta que ignoram o segundo aviso: o Bacurau sai de noite, e ele é brabo.
A violência em Bacurau é uma forma de desconstrução do aparelho estatal repressivo. Ou seja, não se vê polícia ou exército efetuando qualquer tipo de controle ou repressão. Em condições normais, a sociedade parece se auto regular, e a figura de Pacote/Acácio (Thomas Aquino) parece existir como uma espécie de protetor da cidade.
Mas quando a ameaça é externa, é preciso de fato lançar mão da violência, que se dá na figura de Lunga (Silvero Pereira) e sua gangue. Sua atuação não é para repreender desviantes nessa sociedade, mas para salvar o corpo de agressores externos, como anticorpos.
A violência em Bacurau não causa orgulho, pelo contrário. Ou gera vergonha e arrependimento, como quando vemos Acácio querendo se desvincular dos vídeos de compilações de suas mortes na internet, ou gera reflexão. Afinal, a violência que não deve ser esquecida é exposta no museu.
E este é o terceiro aviso aos forasteiros, na figura do convite para que visitem o museu da cidade. A partir daí, não há mais nada que se possa fazer, senão a busca pela sobrevivência do grupo.
Os Aparelhos Ideológicos do Estado em Bacurau
Enquanto os aparelhos repressivos do estado exercem o controle através da violência, como a polícia e o exército, os aparelhos ideológicos do estado exercem o controle através da ideologia.
Em 1970, o filósofo marxista Louis Althusser publicou o livro Aparelhos Ideológicos do Estado. Em seu ensaio, trouxe uma visão crítica sobre o papel de certas instituições presentes no nosso dia a dia. Estas instituições, aparentemente inofensivas, exerceriam um controle que favoreceriam as classes dominantes, à medida que atuariam para perpetuar o sistema ideológico vigente.
Entre elas, podemos citar a escola, a família, a igreja, os meios de informação e o sistema político. E a vida em Bacurau não é livre desses aparelhos ideológicos, mas é bastante interessante como eles são desconstruídos e muito mais orgânicos.
A escola, por exemplo, que vemos na figura do professor Plínio (Wilson Rabelo), é menos opressora. O professor leva os alunos a atividades externas, mas não dispensa o uso da tecnologia, como quando usa o tablet para procurar Bacurau no mapa. De forma emblemática, acaba tendo que usar o mapa físico, de papel, para mostrar aos alunos que Bacurau existe sim, em uma lição que mostra que a tecnologia tem de ser usada com cautela, e a ancestralidade de um povo nunca deve ser abandonada. É a escola que ensina visão crítica.
A visão crítica também fica explícita na cena em que Plínio e Domingas dispõem em uma mesa todas as “doações” feitas para a cidade. Ali, é explicado aos cidadãos os efeitos dos reguladores de humor, e a data de validade dos alimentos. Mas acima de tudo, é dada a autonomia aos cidadãos, para que peguem o que forem usar, com consciência.
Como diz a tão usada frase de Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor“.
Em Bacurau, a educação busca ser libertadora.
A família também é desconstruída, e podemos citar como exemplo o relacionamento homoafetivo e aberto de Domingas, e a “família” de prostitutas e prostitutos. Quanto à igreja, ressalta-se no filme que nunca esteve fechada. Representando que nenhuma religião seria proíbida, está lá para quem tiver necessidade. E o uso dos psicotrópicos também traz a questão da religiosidade ancestral, através dos rituais que ampliam a consciência.
Os meios de comunicação e informação, por sua vez, são representados pelo carro de som do DJ Urso (Jr. Black), e pela trans Darlene (Danny Barbosa), que atua como uma guardiã da cidade, fazendo o papel de avisar qualquer movimentação estranha em sua entrada. Ou seja, uma posição de extrema confiança.
O sistema político, no entanto, é mais difícil de ser desconstruído. É representado na figura de Tony Jr. (Thardelly Lima), que só aparece na cidade para pedir votos, e a vende para a diversão sádica dos estrangeiros. Este sistema não é reconhecido pelos bacurenses, que se escondem quando Tony Jr. visita a cidade, e continuam tomando suas decisões mais importantes em coletividade.
Desta forma, Bacurau é um povoado que subverte os aparelhos ideológicos do estado, e os reconstrói com o bem estar do povo e a coletividade em seu centro. Como diria o filósofo francês Félix Guattari, é uma cidade que “opera onde o poder deixa brechas”.
Bacurau nos mostra que há esperança, que dá para ser diferente.
Bacurau passa por tantos temas que é impossível tratar de todos em um único post. Se você ficou interessado em nossa análise sobre o filme, você pode assistir também a crítica em nosso canal no Youtube:
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Ótima resenha, Marcos! Uma coisa que eu percebi vendo pela segunda vez é que na hora da cidade se refugiar, eles se refugiam na escola. Achei um símbolo bonito