The Sinner | 5 referências e conceitos da Psicanálise na série
O drama The Sinner, produzido e estrelado por Jessica Biel, é instigante e vai te fisgar já nas primeiras cenas.
A série é baseada no livro homônimo de Petra Hammesfahr e conta com 8 episódios que fecham a narrativa de maneira perfeita, então provavelmente não teremos uma segunda temporada. Pelo menos não continuando a mesma história.
Mas analisar The Sinner como um thriller investigativo é raso, da mesma forma com que Freud costumava dizer que a análise da psiquê humana através do consciente seria olhar apenas a ponta do iceberg. Existe muito mais do que a superfície, e alguns temas da série que estão menos visíveis são exatamente os conceitos e referências à Psicanálise Freudiana.
Vamos aos principais tópicos:
1 – Teste de Rorschach
A sequência de abertura da série de cara já dá a dica. Uma animação que faz referência direta às pranchas do Teste de Rorschach e se mescla com o rosto da personagem principal nos dá a indicação de que esta será uma história sobre os mistérios do inconsciente e de informações guardadas na profundidade de Cora Tanetti, personagem interpretada por Jessica Biel.
Mas o que é o teste de Rorschach?
Criado pelo psiquiatra e psicanalista suíço Hermann Rorschach é também conhecido como “teste do borrão de tinta”. Consiste na apresentação de pranchas com manchas de tinta simétricas para o examinado, que dá respostas sobre o que vê nestas manchas. As respostas são avaliadas pelo aplicador do teste, que irá utilizá-las para traçar um quadro da dinâmica psicológica do indivíduo.
Exemplo de uma das pranchas do Teste de Rorschach
Esta técnica de avaliação psicológica se baseada no conceito freudiano de projeção, o processo através do qual o sujeito atribui de forma inconsciente características da própria personalidade a outras pessoas ou estímulos, neste caso às manchas de tinta que podem ser visualizadas de diferentes formas.
O objetivo portanto é se desvencilhar dos mecanismos de defesa do examinado, chegando diretamente aos conteúdos que não podem ser acessados simplesmente pela consciência do indivíduo.
2 – O Inconsciente
Apesar do tema ser abordado na psicologia até hoje com bastante controvérsia, a descoberta do insconsciente por Freud foi tratada à sua época como uma verdadeira revolução psicanalítica.
A proposição de que o ser humano consciente não seria o senhor absoluto de suas decisões, afinal estas seriam guiadas por conteúdos e processos de seu inconsciente, foi revolucionária.
Esta descoberta foi nomeada como a terceira ferida narcísica da humanidade, sucedendo a descoberta de Copérnico de que o universo não gira ao redor da terra, e de Darwin, que provou que o ser humano é apenas mais um animal, não mais especial que os demais, que desenvolveu-se através do processo evolutivo de seleção natural.
Ou seja, não somos especiais do ponto de vista cósmico, não somo especiais enquanto seres, e nem mesmo somos especiais o bastante para tomarmos nossas próprias decisões de forma consciente.
Em The Sinner esta proposta fica clara, à medida que a ação mais importante desferida pela personagem principal, que desencadeia toda a trama da série é tomada de forma totalmente inconsciente, e ela mesma não consegue explicar o porquê de ter agido como agiu.
Cora Tanneti atônita ao ser surpreendida pelo seu inconsciente
Mas como acessar este inconsciente?
No início da teoria psicanalítica, existia a crença de que o inconsciente poderia ser acessado através dos sonhos e de processos de hipnose, que foram muito utilizados por Freud em suas consultas, mas acabaram sendo substituídos pela livre associação. Ou seja, através da fala livre de um paciente sobre seus sentimentos e acontecimentos de sua vida, o inconsciente vez ou outra viria a tona, através de atos falhos, por exemplo.
Em The Sinner, um dos principais recursos utilizados na investigação do passado de Cora é a hipnose, já que as memórias não estão acessíveis ao consciente da personagem. A técnica é empregada pela psiquiatra do departamento de polícia, que se mostra reticente, mas acaba cedendo ao apelo do detetive Harry Ambrose, interpretado por Bill Pullman.
3 – Id, Ego e Superego
Segundo o modelo psíquico criado por Freud, nossa psiquê seria formada por três estruturas de personalidade que se relacionariam entre si através de uma dinâmica conflituosa: Id, Ego e Superego.
O Id, totalmente inconsciente, seria regido pelo princípio do prazer. Busca a satisfação imediata dos desejos (em sua grande parte sexuais ou agressivos) e a evitação da dor ou desprazer. O Id é biológico e instintivo, não estando ligado a normas morais ou princípios éticos. Enquanto isso, o Superego faz esse papel moral na personalidade do sujeito, que reprime os impulsos que não são aceitáveis pela sociedade. O Ego, por fim, seria o princípio da realidade, a resolução da “batalha” entre Id e Superego. Um Ego bem resolvido é capaz de interagir de forma positiva com o mundo, coordenando a busca por prazer com as regras sociais e expectativas da sociedade.
Id, Ego e Superego em emojis
Em The Sinner, podemos traçar um paralelo destas estruturas psíquicas com a família de Cora Tanneti. Sua irmã Phoebe, por conta de sua doença, não pode sair de casa e experimentar a vida. Por isso, busca viver suas experiências através de Cora, a estimulando a sair de casa e buscar prazer através da exploração de sua sexualidade. Sua irmã faz portanto o papel do Id, que na busca por prazer muitas vezes de forma inconsequente leva Cora a situações perigosas e moralmente questionáveis.
Phoebe manipula Cora e realiza através dela a sua busca por prazer
Sua mãe, em oposição, faz o papel de Superego, e usa como principal arma a religião. É ela que freia os impulsos de Cora, introjetando nela os conceitos morais pautados pela religião que iriam definir o que é ou não um comportamento aceitável. O desenvolvimento de Superego, de acordo com Freud, só se dá por volta dos 3 a 5 anos de idade, quando as regras de comportamento impostas pelos pais são incorporadas pela criança à sua própria psiquê. A partir de então, ela própria começa a julgar suas atitudes e regular seu comportamento.
A religião é a arma da mãe de Cora e Phoebe para tentar educá-las e frear seus impulsos
Da mesma forma que um Superego frágil pode impactar negativamente a vida de uma pessoa, que teria dificuldades de frear seus impulsos, um Superego repressivo demais também representa uma ameaça, já que pode gerar sentimentos constantes de culpa e uma personalidade muito reprimida, com dificuldade de aproveitar os prazeres da vida.
Esta é exatamente a situação de Cora em The Sinner, que teve seu Ego “espremido” entre o Id e o Superego, sem espaço para uma construção saudável de sua própria personalidade.
4 – Dissociação
O conceito de Dissociação foi definido por Pierre Janet, em 1889. Trata-se de um estado de descompensação mental em que pensamentos e memórias podem ser ocultados pela consciência, por serem chocantes demais para o indivíduo.
A Dissociação atuaria, portanto, como um mecanismo de defesa do organismo, protegendo o sujeito de possíveis impactos psicológicos frutos de experiências traumáticas.
A Dissociação pode ocorrer no Transtorno de Estresse Pós-Traumático, a partir de fortes traumas vividos pelo sujeito, mas também pode estar presente em distúrbios de personalidade e inclusive ser induzida, em um estado temporário, por substâncias psicoativas. Muitas vezes a pessoa pode se lembrar de momentos específicos ou “flashes”, mas não da experiência completa.
Cora Tanneti com seu filho e marido, curtindo uma praia como uma família normal
Em The Sinner, a perda de memória de Cora realmente parece estar ligada a algum forte trauma vivido no passado, que vai sendo revelado ao longo da série. No entanto, fica claro que algumas informações foram ocultadas de sua consciência, para que ela conseguisse viver uma vida normal com sua família e cumprir seu papel de esposa, mãe e trabalhadora. Afinal, esta é a vida padrão esperada de uma mulher, segundo as fortes bases religiosas com as quais foi educada por sua mãe.
5 – A Culpa
Chegamos por fim a questão que acredito ser a principal temática da série, e que permite que os dois personagens principais desenvolvam uma forte conexão: o sentimento de culpa.
Por que tanta culpa?
Freud, em seu livro “O Mal-Estar na Civilização”, discorre sobre a relação entre a vida em sociedade e o sentimento de culpa. Segundo o autor, a civilização e a sociedade só são possíveis graças a este sentimento, afinal, ele nos impede de agir de forma egoísta para atender apenas nossos interesses às custas de prejudicar os que estão à nossa volta.
E por que seria importante não prejudicar os que estão a nossa volta?
Porque a vida em sociedade é essencial para o ser humano. É a forma que temos de aumentar as nossas chances de sobrevivência no meio ambiente. E para funcionar bem em sociedade, é necessário que construamos relações sociais saudáveis, o que torna essencial que nos sintamos culpados de prejudicar o próximo em benefício próprio.
Para Freud, então, a cultura/civilização seria uma espécie de Superego coletivo, que controlaria o comportamento da sociedade através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa.
Sob esse ponto de vista, a culpa poderia ser inclusive interpretada como uma característica evolutiva da raça humana.
No entanto, apesar deste lado positivo, o sentimento de culpa pode se tornar um problema, principalmente quando é estimulado de forma exagerada durante o desenvolvimento psíquico do ser humano, ou seja, durante sua infância.
Ambrose e Cora se sentem constantemente culpados, o que contribui para que se identifiquem
Na trama de The Sinner, a culpa tem um papel muito importante na construção dos dois personagens principais, o que faz com que eles se identifiquem e desenvolvam um tipo de cumplicidade.
No caso de Cora, vemos ao longo dos episódios que o sentimento de culpa é introjetado por sua mãe através da religião e do mal estar de sua irmã, Phoebe. Sua mãe a todo momento explica que a condição de saúde de Phoebe é culpa dos maus comportamentos de Cora, que teria desencadeado uma punição divina para a família. Cora então se sente culpada de aproveitar a vida, de sair de casa e deixar sua irmã sozinha, e até de comer chocolates.
Já o caso do personagem vivido por Bill Pullman é mais complexo, pois não temos acesso as experiências de sua infância. No entanto, rapidamente percebemos que seu comportamento sexual sadomasoquista é uma espécie de punição que aplica a si mesmo. Não conseguimos entender exatamente o motivo disso, já que pode ser pela culpa de dar mais atenção ao trabalho do que a seu casamento ou por alguma questão relacionada a sua infância.
Detetive Ambrose insiste em se punir através de sua relação extraconjugal
Os paralelos com as teorias da psicanálise e a psicologia como um todo são tantos, e tão bem trabalhos, que é impossível interpretá-los como mera coincidência. The Sinner recorre explicitamente às ideias de Freud para propor uma viagem a fundo na psiquê humana, passando pelos principais temas e conceitos de sua obra, ainda que na superfície pareça se tratar de apenas mais série de suspense.
E aí, consegue traçar outros paralelos com a psicanálise ou com a psicologia? Comenta aí!
E não esqueça de ler também nosso post sobre a segunda temporada de The Sinner.
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Excelente análise!!!
Que bom que curtiu! =)
Ahazou!
Nossa, adorei sua análise!
Eu só gostei realmente da série porque fui percebendo que ela tratava de muitos conceitos relacionados à Psicologia.
Vi em outra crítica que possivelmente não haverá uma segunda temporada porque a história já foi encerrada perfeitamente, mas para mim ainda há muito o que se explorar.
Terminei a série desejando conhecer mais sobre os segredos que rondam a vida de Ambrose, por isso espero que haja continuação da série.
Também espero que façam uma segunda temporada sobre o Ambrose. A produção tem muita qualidade, tenho certeza que iam conesguir manter o alto nível. 😉
Oi passando apenas para dizer que achei essa análise bastante interessante.
Valeu, Pri!
Obrigada! pela análise.
“O sentimento de culpa é um dos fatores mais limitantes do ser humano.
O mais terrível é que mesmo sabendo dos motivos e/ou determinantes e/ou condicionantes…
… o indivíduo não consegue deixar de tê-lo, mesmo quando fatos/circunstâncias não são sua culpa.
… o indivíduo muda sua trajetória de vida por essa sensação que fica introjetada no consciente e subconsciente.
O detetive Ambrose comenta isso no final da série ao levar a Cora para o presídio.
A série nos leva a auto-análise e talvez….
…por que não?
… voltar a fazer análise?
Rsss
hahah sim!
O autoconhecimento é caminho para ser mais feliz e evitar armadilhas que causamos a nós mesmos! =)
Já tinha adorado a série. Agora, tudo ficou ainda mais incrível!
Maravilha! =)
Parabéns pela análise da série! Sou leiga em psicologia mas procuro ler sobre o assunto por curiosidade. Adorei a série e gostaria muito de uma segunda temporada.
Obrigado pelo comentário, Beatriz! Também estamos torcendo pela segunda temporada!
Amei a análise! Encontrei neste site um nível de conhecimento elevadíssimo e profundo, que tem as condições perfeitas para avaliar as séries e filmes que eu gosto. Marcos, você poderia comentar um pouco sobre a relação mãe/filhas nesta série? Você, como eu, percebeu que a mãe tinha uma preferência extrema pela Phoebe e uma rejeição em relação à Cora? Como poderíamos explicar isso?
Outra coisa: Poderíamos dizer se há qualquer referência ao complexo de Electra ou ao de Édipo?
E em relação à passividade do pai, diante do fanatismo da mãe e da forma como ela prejudicava toda a família? Eu percebi um paralelo entre as gerações: Phaebe teria se saído semelhante à mãe: (ainda que pareça uma comparação paradoxal) do tipo controladora, manipuladora, dominante, e a Cora teria “puxado” ao pai: passiva, submissa, que aceita tudo calada. Esse tipo de relação está aqui maquiada, mas bem explícita no relacionamento do Detetive Ambrose com sua amante. Seria isso uma coincidência?
Mais uma vez agradeço a atenção.
Ah, que bom que está gostando do conteúdo! =)
Sobre a dinâmica entre a mãe e as filhas, acredito que a questão da religiosidade tenha sido o que norteou a maior parte do relacionamento entre elas. Não sei se dá para dizer que a mãe preferia a Phoebe, mas ela claramente estabeleceu uma relação causal entre a efermidade dela e os comportamentos da Cora. A religião católica trabalha muito com o conceito de culpa para “controlar” o comportamento e mãe delas faz o mesmo papel da religião ao introjetar a culpa na mente das filhas. No entanto, ela alivia com a Phoebe e impõe a culpa por tudo na Cora, já que ela associou a doença de Phoebe a uma punição divina.
Nesse caso, não me parece que exista referências ao Complexo de Electra ou de Édipo, mas a narrativa toda explorando essas diferentes esferas da culpa. Mas interessante isso que você trouxe da submissão de Cora, o Pai e Ambrose. A submissão no caso de Cora e Ambrose vem muito pelo sentimento de culpa. No caso do Pai, não temos conhecimento aprofundando sobre o histórico dele para entender se a culpa também tem um papel, mas o fato dele trair a esposa já pode ser uma das causas de sua culpa e de sua submissão.
Fico sempre voltando na questão da culpa, pois para mim é realmente o tema central em The Sinner. =)
1) Na relação com filhas o pai é a LEI. O problema de Cora não era ter uma mãe impregnadora de culpa, mas um pai fraco para interromper esse ciclo.
2) A maior perversidade que se faz com uma criança é elegê-la como a filha predileta. Observe que a irmã doente se torna extremamente ameaçadora e manipuladora. “Se não me levar para a festa vou gritar e acordar os nossos pais”. É ela quem dita e controla o que a irmã deve fazer, sair com quem, etc.
3) O detetive declara de forma bem explícita que não sabe como lidar com o que fizeram com ele, na infância dele, e esse foi o seu motriz para ajudar alguem (Cora) que tinha sido abusada na infancia.
4) Drogar-se e prostituir-se são caminhos certos para meninas com pai ausente.
5) Toda religião repressora cria devassos sexuais. A compulsão das duas meninas por pornografia, por prostituição, por sexo grupal é fruto dessa repressão. Na vontade de criar “filhas puras”, aquelas mãe religiosa criou duas devassas.
6) A forma de lidar com a morte está diretamente ligada a religião ou a ausência dela. O sentimento de finitude pede para antecipar a vivência de momentos de prazer e não o medo do castigo eterno, de “ir para o inferno”, que deveria ser a consequencia lógica da Phoebe. A religião equivocada traz essas controvérsias!
7) Quanto mais a mãe culpava a Cora pela doença da Phoebe, mas elas culpavam a Deus. Os maiores revoltosos da humanidade, são pessoas que tem um conceito errôneo de Deus, baseado em suas experiências tristes e desapontadoras. Quando não encontramos respostas para os nossos “porquês”, será sempre mais facil envolver Deus no drama da nossa vida sem sentido.
8) Toda mulher fraca emocionalmente, mulher traumatizada, abusada, buscará um novo abusador na sua vida adulta. Será sua forma de auto-punição, auto-flagelo eterno, por não ter sido forte o suficiente na infância.
Perigosa a sua ponderação no quarto item. Atualmente, se tomarmos uma dimensão lacaniana, as estruturas funcionais de ´´pai“ e ´´mãe“ devem ser compreendidas enquanto símbolos , que podem estar presentes em quaisquer indivíduos. Essa noção funcional e simbólica distancia de uma dimensão puramente corpórea e orgánica de homem, para que alguém tenha ou se torne um pai.
Boa noite. Por que Cora não perguntou à tia sobre o paradeiro da irmã? Se dissessem que ela havia morrido, por que nunca quis ir ver seu túmulo? Outra, por que a mãe disse pro detetive no inicio que a filha doente havia morrido 1 mes depois do sumiço de Cora?
Que comentário carregado de machismo hein? Tanta gente q é criado por vó, mãe e se não tiver pai vai ter q criar um pq o ” pai” é a lei?
Excelente trabalho!
Parabéns!