Nasce Uma Estrela | Relacionamentos tóxicos e sacrifícios na corrida pelo Oscar

Nasce Uma Estrela poderia ser um filme fabricado exclusivamente para alavancar a carreira da Lady Gaga em Hollywood. Afinal, é um obra que tem como pano de fundo a indústria musical, e a diva pop interpreta uma garçonete aspirante a cantora, tendo composto diversas canções para a trilha sonora. Além disso, o trailer e toda a propaganda do longa, maciçamente apoiados no vozeirão de Gaga, também induziam ao pensamento de que o filme seria uma ode à cantora.

Felizmente, ele é muito mais que isso.

Primeiro longa dirigido por Bradley Cooper, Nasce Uma Estrela é a quarta versão para o cinema do clássico de 1937. Sua segunda versão (1954), estrelada por Judy Garland, ocupa o sétimo lugar na lista dos 25 maiores musicais norte-americanos de todos os tempos. Na adaptação de Cooper, Jackson Maine (Cooper) é um famoso cantor alcoólatra que no auge da fama conhece Ally (Gaga), uma aspirante ao estrelato. Impressionado com sua voz, Jack decide se tornar mentor de Ally e a ajuda a lançar sua carreira, enquanto os dois vivem uma história de amor.

O título nos induz ao erro de pensar que o filme focará em acompanhar a trajetória de Ally rumo ao sucesso. Na verdade, esse arco do longa é rapidamente concluído. Rapidamente, Ally já é uma estrela. E é por isso que Nasce Uma Estrela não se resume a dar exposição à carreira de atriz de Gaga. Ele poderia ser mais um filme meta sobre um ícone pop interpretando uma aspirante a cantora, mas seu real foco é a relação de codependência entre Jack e Ally, e como ela acaba os consumindo.

 

Ally triste em Nasce Uma Estrela

 

Apesar de ter sido filmado em apenas 42 dias, Nasce Uma Estrela deu trabalho para Cooper. Além de estrear na direção, o ator teve que fazer aulas de canto por mais de um ano para performar e gravar ao vivo todas as canções do filme. Essa foi uma exigência de Gaga, já que a cantora não é fã de filmes que gravam as músicas previamente para que os atores as dublem na frente das câmeras. Acerto de Gaga, já que, sendo interpretadas ao vivo, as canções se encheram de emoção e significado.

Outro acerto do longa está na fotografia de Matthew Libatique. Responsável por sucessos como Cisne Negro, Libatique conseguiu captar toda a química e a energia de um amor nutrido pelos palcos. A fotografia de Nasce Uma Estrela é repleta de câmeras intimistas, com muitos close ups, luzes e movimentos. Como resultado, o público se sente dentro dos shows e festivais nos quais performam Ally e Jack, e cúmplices de todo o seu amor.

Ainda é cedo para se falar em Oscar, mas pode-se dizer que Nasce Uma Estrela saiu à frente na corrida para a estatueta, principalmente nas categorias de Melhor Canção Original, Melhor Filme, Melhor Fotografia e (quem sabe?) Melhor Atriz.

 

Atenção, pois os próximos tópicos desta resenha contêm spoilers de Nasce Uma Estrela

 

Relacionamentos tóxicos em Nasce Uma Estrela

Jack abraça Ally em Nasce Uma Estrela

 

O que não está implícito no título é a consequência da ascensão ao estrelato de Ally. Enquanto nasce uma estrela, outra decai.

Ao perceber que Ally não precisa mais dele, Jack abusa cada vez mais do álcool e das drogas para curar suas inseguranças. E para retratar a magnitude do vício e o quão degradante ele pode ser, Cooper protagoniza uma das cenas mais embaraçosas dos últimos tempos no cinema.

Enquanto isso, Ally luta para equilibrar sua carreira de sucesso com os problemas de Jack. Ela se recusa a abrir mão dele, por quem nutre um sentimento de eterna gratidão, já que foi ele que a descobriu cantando em um bar de drag queens, quando todos os demais a viam apenas como uma garçonete.

E para cuidarem um do outro, ambos cometem sacrifícios. Jack cancela alguns shows para ajudar na carreira de Ally. Ela, por sua vez, cancela turnês para ficar com o marido enquanto ele se recupera de seu vício. Até que o relacionamento codependente dos dois culmina no sacrifício final de Jack.

Após voltar da reabilitação, o agente de Ally conversa com Jack que Ally o ama demais para admitir que ele sempre será um peso que carregará a cantora para baixo e a afastará de alcançar todo o seu potencial. Ele afirma que o próprio Jack sabe que sua sobriedade é algo temporário, e que seu retorno ao vício pode destruir a carreira de Ally e tudo pelo qual ela lutou para conquistar.

Arrasado com a percepção de que ele é o responsável por prejudicar a vida de sua amada, o já depressivo Jack comete o sacrifício final, e se suicida para que Ally possa se ver livre dele.

 

Jack toca piano e Ally se emociona em Nasce Uma Estrela

 

Para o contexto da obra, o suicídio de Jack foi necessário para arrancar as lágrimas finais da plateia e classificar Nasce Uma Estrela como uma linda história de amor e sacrifício.

No entanto, há algo (muito) distorcido na ideia de que vale a pena nos mantermos num relacionamento tóxico por amor, ou que o suicídio configura uma prova de amor. Ninguém se mata por culpa de alguém, ou para livrar alguém de um mal.

O suicídio é um ato desesperado para por fim a um sofrimento que parece infinito. Não é uma atitude egoísta, não demonstra coragem ou fraqueza. É a triste saída imediata e irreversível para fazer cessar a insuportável dor interior.

Ao demonizar o suicídio, o assunto se torna um tabu, o que faz com que pessoas com pensamentos suicidas sintam vergonha de seus sentimentos. Isso dificulta que elas busquem ajuda, e em consequência acabam se isolando mais. Sozinhas, não veem perspectiva de melhora e os pensamentos suicidas crescem, fechando o ciclo.

No entanto, romantizar o suicídio pode ser igualmente perigoso. Afinal, teria Jack desistido de viver ou realizado uma atitude altruísta ao abdicar da sua vida para salvar sua amada dos seus próprios demônios?

A romantização do suicídio nas obras não é recomendada pela cartilha de recomendações da Organização Mundial da Saúde. O tema já foi abordado e duramente criticado na polêmica série adolescente da Netflix 13 Reasons Why. Para uma pessoa com a mente saudável, uma cena de suicídio pode ser pesada e triste, mas não há como se prever a forma que alguém lutando contra a depressão pode absorvê-la. Ainda mais quando o ato é associado a sentimentos como altruísmo, culpa e nobreza. Como o sacrifício final de Jack para salvar Ally de si mesmo.

E por que Jack tinha que se sacrificar (literalmente) por Ally? Não deveria ela ter o direito de tomar suas próprias decisões? Por outro lado, por que Ally tinha que abdicar de sua carreira para cuidar do impacto que ela estava tendo em Jack?

 

Por que valorizamos tanto os sacrifícios por amor?

 

É claro que para um relacionamento saudável dar certo, ambos têm que ceder. Nem sempre fazemos só aquilo que queremos, porque pensamos no quanto nossas atitudes podem afetar o outro. Estar em um relacionamento é exercitar a empatia.

O problema é quando há empatia demais. Vivemos em uma sociedade majoritariamente individualista, mas há aqueles que resistem a essa ideia, e educam seus filhos contrariamente a esta noção. Há aqueles que são ensinados desde pequenos a pensarem primeiro sempre no outro.

Pensar no outro é tão essencial que é o que nos permite viver em sociedade. Mas priorizar sempre o outro é uma armadilha. O excesso de empatia pode levar à crença de que não somos tão importantes quanto o outro. Afinal, se o outro é mais importante que eu, devo fazer de tudo para atender às suas necessidades, mesmo que no processo eu fique infeliz.

A valorização do auto sacrifício reforça a ideia romântica (e distorcida) de que tal comportamento é uma prova de amor. O perigo disso é que pessoas empáticas demais podem ser consumidas por relacionamentos tóxicos e abusivos.

Colocar as necessidades do outro sempre à sua frente é uma forma de se negligenciar.

 

Ally cantando em Nasce Uma Estrela

 

Ao final de Nasce Uma Estrela, Ally estava consumida por um relacionamento tóxico, que lhe fazia mal. Jack não tinha culpa de sua doença. Por sua vez, Ally não tinha culpa do impacto que sua fama causava em Jack. Ao final, os dois se sacrificaram em prol do relacionamento.

E os dois sofreram as consequências disso.

A crença do sacrifício como prova de amor também diminui as chances de um relacionamento saudável. Ao se relacionar com alguém que se sacrifica “de menos”, uma pessoa empática demais pode interpretar tal atitude como falta de amor.

Na verdade, a palavra sacrifício significa exatamente aquilo apontado pelo dicionário: é um martírio, um sofrimento, um holocausto. Se não atribuímos a essas outras palavras conotações positivas e românticas, por que fazemos isso com o sacrifício, já que essencialmente elas significam a mesma coisa?

 

O longa de Cooper serviu para nos relembrar as consequências mais viscerais (e literais) da noção de sacrifício como prova de amor. E elas não são bonitas, ou terminam em final feliz.

Nasce Uma Estrela é um filme sensível que mostra que Bradley Cooper tem uma carreira promissora como cineasta, e Lady Gaga como atriz. O título seria ainda mais certeiro se estivesse no plural.

 

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Boo Mesquita

Geek de carteirinha e cinéfila, ama assistir a filmes e séries, ir a shows, ler livros e jogar, sejam games no ps4 ou boards. Quando não está escrevendo, pode ser vista fazendo pole dance, comendo fora ou brincando com cachorrinhos. Me siga no Instagram!

10 thoughts on “Nasce Uma Estrela | Relacionamentos tóxicos e sacrifícios na corrida pelo Oscar

  • 24 Outubro, 2018 at 11:33
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    Sua crítica ficou muito boa, Boo.
    Só senti falta do alerta ‘contém spoiler’ hahaha
    Achei muito necessário e bem colocado o seu posicionamento sobre a não romantização do suicídio e, especialmente, a relação deste ato com o excesso de empatia, condicionado essencialmente por relacionamentos conflituosos e abusivos (que vão desde os laços familiares e amorosos à sociais, em geral).
    Como Psicóloga, também percebo uma forte ligação do suicídio com o sentimento de culpa que, por sua vez, desencadeia uma necessidade autopunição.
    Nossa condição existencial é uma consequência da expectativa da percepção alheia sobre quem somos nós, o que nos torna “escravos” da visão que os outros têm sobre quem somos. Ou seja, nossa autoimagem é dependente da imagem que o outro vê em nós, considerando a forma como somos afetados pelo julgamento alheio e a necessidade que temos em obter aprovação social, na qual tentamos constantemente agradar ou nos “encaixar” com alguém ou com um grupo.
    Na situação do suicídio do Jack, por exemplo, demonstra que ele passou a se sentir um ‘fardo’ na vida da Aly, e essa ideia sobre si foi “plantada” ou fortalecida a partir da fala de uma terceira pessoa, gerando um sentimento de culpa que foi somado aos seus conflitos internos como a baixa autoestima. Portanto, o suicídio não é ato individual, mas sim uma “morte social”, já que se trata da relação que temos com a nossa própria autoimagem, sendo que esta depende, essencialmente, de como o outro nos vê.
    Por isso é tão importante aprendermos a equilibrar e limitar espaços nas nossas relações, para que cada um seja autor e protagonista das próprias decisões, ao invés de viver num jogo de culpa e projeção de expectativa.

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    • 25 Outubro, 2018 at 12:19
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      Dayana, ficamos muito felizes que tenha gostado da nossa resenha! Acho que nunca tivemos um comentário tão denso e elucidativo! Adorei sua interpretação do suicídio como “morte social” =)

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  • 2 Fevereiro, 2019 at 9:03
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    Fiquei muito preocupada ao assistir ao filme. Não tenho dúvidas que o número de suicídios pode aumentar, e por enforcamento idem. Ainda achei perigoso o filme passar uma ideia de “nobreza” ao mostrar Ally abrindo mão da carreira e suportanto tudo para manter um relacionamento desse. Não saí com uma sensação boa, tipo um pressentimento. Não sei bem explicar; Como tenho mediunidade, senti como se houvesse um manto de escuridão por cima daquilo tudo. Sei lá. São apenas as minhas impressões. Mas tecnicamente, o filme é muito bom. Merece ganhar uns Oscars.

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    • 16 Março, 2019 at 22:47
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      Tem mediunidade coisa alguma. Deixe de conversa furada.

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  • 4 Fevereiro, 2019 at 23:10
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    Tenho depressão e a cena final me afetou deEuma maneira muito forte. Assisti com amigos e nenhun deles reagiu da mesma forma que eu, porém não exerceu nenhum tipo de influência sobre mim. Simplesmente tocou minha empatia. Não vi romantização do relacionamento tóxico deles, pelo contrário, vi um retrato cru de como duas pessoas que se amam muito podem, infelizmente, fazer mal uma a outra, apesar desse amor. Além disso, nenhum filme tem obrigação de ser moralista e ter sempre uma moral da história, como se fosse uma fábula. Por vezes, o filme só está lá pra mostrar uma história e abrir nossas mentes pra diversas reflexões, como esse faz muito bem. Eu acho que a romantização fica por parte de quem o assiste e isso é um contexto muito mais social do que parece..

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  • 13 Março, 2019 at 0:26
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    GOSTEI MUITO DO FILME,AS MÚSICAS SÃO PERFEITAS,MAS O RELACIONAMENTO ENTRE ALLY E JACK MOSTRA COMO OS SACRIFÍCIOS QUE FAZEMOS PELO OUTRO TEM PESO EM NOSSAS VIDAS,MOSTRA TAMBÉM COMO AS NOSSA PALAVRAS PODEM AFETAR ALGUÉM COMO POR EXEMPO QUANDO O PRODUTOR DE ALLY DIZ AQUELAS PALAVRAS AO JACK,POR MAIS QUE VERDADEIRAS AO MEU VER FORAM UM FATO PARA LEVA-LO AO SUICÍDIO.
    MECHEU MUITO COMIGO AS CANÇÕES E O AMOR IMENSO QUE UM SENTIA PELO O OUTRO.

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  • 14 Março, 2020 at 0:09
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    Esse e o segundo melhor filme que ja assisti.. o primeiro e todos os outros, to brincando filme bacana.

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  • 23 Abril, 2020 at 0:23
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    “. Ao final do filme, muitos irao chorar, muitos irao pensar em rever e muitos irao correr para achar a trilha sonora de  Nasce uma Estrela .

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  • 24 Novembro, 2020 at 1:18
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    Gostei do filme mas acho que ela deveria seder se o amava afinal ele q descobriu o talento dela p música e ela acabou deixando um pouco de lado o amor deles e focou na fama. Mas uma vez a fama subiuba cabeça..

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  • 24 Novembro, 2020 at 3:58
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    Minha leitura do filme foi diferente, meninas.

    Jack é exibido como um artista muito talentoso mas que está longe de ser um John Bon Jovi no quesito fama/sucesso. E a causa pra isso parece estar numa convicção pessoal de Jack de não se render a atalhos: ele compõe e admira composições verdadeiras (não necessariamente ultrapopulares) e mantém uma equipe amadora (com o próprio irmão à frente).

    Revelada por Jack, Ally, por seu lado, se encanta demasiadamente por um caça-talentos/produtor claramente mercenário. Ela aceita mudanças bruscas no visual, na postura e, pra maior decepção de Jack, nas próprias composições.

    Não há que se falar em conduta antiética de Ally, até por que ela se manteve carinhosamente ao lado dele. Mas penso que ao menos é possível considerar uma hipótese de desencantamento/desilusão de Jack em relação à figura que ele havia construído de sua amada. Ao dar vida à estrela, da forma como fez, ela se distancia de Jack. Penso que caso ela optasse por compor a banda junto a ele (abrindo mão do estrelato), isso não se configuraria em um sacrifício, mas em uma escolha tão plausível quanto a que ela fez.

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