Nanette e Elder Millennial | Diferentes vozes femininas no stand up

Se teve um especial de stand-up que estreou de forma tímida no Netflix e que virou febre nos meses subsequentes foi Nanette. Nele, a comediante australiana Hannah Gadsby explica ao público os motivos pelos quais decidiu largar o humor. Semanas depois, o serviço de streaming apostou no sucesso da temática feminista para lançar em seu catálogo o novo especial da comediante Iliza Shlesinger, intitulado Elder Millennial.

Apesar de não ter tido a mesma força de Nanette, Elder Millennial figura nas produções em alta do serviço de streaming desde a sua estreia.

À sua maneira, ambos os especiais fazem uma crítica social ao machismo de nossa época, enquanto tentam tratar de questões feministas, como o empoderamento e autoaceitação. Tentam.

Enquanto Nanette é extremamente bem sucedido em sua crítica, Elder Millennial gera dúvidas sobre se é uma excelente sátira ou se reforça ainda mais os esteriótipos que visa combater.

 

Atenção, os próximos tópicos desta crítica podem conter spoilers de Nannete e Elder Millennial.

 

Nanette

Hannah Gadsby em Nanette

 

Durante os 20 minutos iniciais de Nanette, confesso que não havia compreendido todo o frisson envolvendo o especial. Parecia só mais um stand-up com conteúdo autodepreciativo.

Sendo Hannah Gadsby lésbica, este era o foco de suas piadas. Algumas eram bem elaboradas e inteligentes, como quando Gadsby desabafa que não há espaço para gays introvertidos, porque o mundo espera que eles sejam espalhafatosos, e que sempre levantem a bandeira pró LGBTQ. Ou quando a comediante explica que não presume que todos os bebês carecas sejam meninos. Ela presume que eles sejam feministas raivosas e os trata com respeito. Genial.

 

Hannah Gadsby em NanetteEu não presumo que bebês carecas são meninos. Eu presumo que são feministas raivosas e os trato com respeito.”

 

Gadsby era sem dúvida talentosa, e utilizava o humor para fazer uma crítica bem construída aos esteriótipos de nossa sociedade. Mas ainda assim, Nanette era um stand-up que não se destacava muito dos demais disponíveis no catálogo do Netflix.

Até o momento em que Gadsby fala sobre sua decisão de largar a comédia.

Mudando completamente o tom antes “leve” do especial, a comediante passa a expor ao público toda a sua vulnerabilidade de forma séria. A plateia, antes anestesiada pela proteção concedida pelo véu da comédia, não podia mais evitar o grande desconforto e clima de tensão que crescia no palco.

 

Hannah Gadsby em Nanette

 

O brilhantismo da piada autodepreciativa é que ela isenta a plateia de qualquer culpa por rir de situações que, do contrário, não teriam a menor graça. Ou teriam, mas você certamente seria julgado por achar isso. 

É uma autorização para a cretinice. Eu posso rir de uma piada depreciativa aos negros, afinal é um próprio negro que está falando isso, não eu. Nos isentamos de toda a responsabilidade.

Mas justamente por ter um conteúdo ofensivo a alguém, ou a alguma classe, nenhuma piada depreciativa é desprovida de tensão. E é exatamente nesta tensão que Gadsby baseia sua decisão de largar a comédia.

A autodepreciação é uma forma de proteção. Rimos de nós mesmos para que não doa tanto quando formos objeto de gargalhadas alheias. Afinal, nós autorizamos esse riso. A sensação de estar no controle dos risos nos conforta. Confundimos poder com empoderamento.

 

Hannah Gadsby em Nanette“Vocês precisam aprender como é se sentir assim, porque essa tensão é o que pessoas não consideradas normais pela sociedade sentem o tempo, só todo porque é perigoso ser diferente!”

 

Gadsby percebeu que ao autorizar que continuassem rindo de sua situação como mulher lésbica, ela não contribuía para uma melhora de seu amor próprio e sua autoestima. Do contrário, ela percebeu que acreditava ter o mesmo valor que as protagonistas de suas piadas.

Assim como diversos outros comediantes, Gadsby estava tão acostumada a pegar os limões que a vida oferecia e fazer uma limonada para o deleite alheio que não percebeu que a ela, só lhe restavam os bagaços amargos e os caroços que entalavam em sua garganta.

Em um belo ato de acolhimento e amor próprio, a comediante expõe que retirou a permissão para os risos quanto à sua condição como mulher lésbica. Agora, a tensão não estava mais travestida de piada. Era só desconforto e angústia em sua forma crua, e o público iria passar a se responsabilizar por ela.

De objeto digno de piada, Gadsby tornou-se merecedora de respeito. E foi essa epifania que transformou o que seria só mais um stand-up em uma das melhores lições sobre aceitação amor próprio dos últimos tempos.

 

Elder Millennial

 

Após o estouro de Nanette, o Netflix lançou Elder Millennial, da comediante Iliza Shlesinger. O sucesso foi tão grande que Confirmed Kills, outro especial de Shlesinger, passou a figurar entre o conteúdo “em alta” do serviço de streaming.

Shlesinger tem um humor ácido e suas considerações sobre o feminismo já causaram polêmica. Desde então, para não prejudicar sua imagem, ela optou por seguir uma linha não tão feminista, mesmo se considerando como tal.

Em Elder MillennialShlesinger parece ter a intenção de fazer uma crítica feminista ao papel da mulher em nossa sociedade, e aos padrões que somos pressionadas a seguir. Infelizmente, ela não obtém o mesmo sucesso que Gadsby teve em Nanette.

O especial ia bem, principalmente pelo carisma e pelas impressões de Shlesinger, que é bem articulada e prende o público com suas imitações e hiperatividade. Logo no início, ela explica rapidamente o título de seu especial, referente ao fato de ela, aos 35 anos, se considerar uma millennial idosa. Parecia um stand-up sobre a juventude que cresceu pós anos 2000.

E então Shlesinger informa ao público que está noiva.

 

 

A partir daí, a comediante engata em uma série de esteriótipos pejorativos sobre o comportamento das mulheres. Ao sair para uma boate, o grupo de amigas vai caçar em vez de apenas curtir a companhia uma da outra. Mulheres se pintam e se vestem de forma provocativa para o deleite dos homens. Elas arrumam a casa só quando o parceiro vai visitá-las. O animal de estimação da mulher serve como um estepe para o filho que ela ainda não tem.

Para que seu discurso não fosse de todo antiquado em um mundo pós #MeToo e #TimesUp, Shlesinger pontua suas piadas com algumas críticas. Em determinado momento, a comediante expõe que mulheres não estão acostumadas a sentirem rejeição no que tange ao sexo. Elas estão habituadas a se sentirem rejeitadas em outros assuntos, como não terem controle sobre seus corpos e pensamentos ou por não receberem o mesmo salário que os homens.

Shlesinger dá conselhos sobre empoderamento ao falar que as mulheres podem ser o que elas quiserem, e que não deveriam se sentir pressionadas a seguir os padrões de nossa sociedade, ou o que é esperado delas. Entretanto, a comediante tem esse discurso em um especial de 70 minutos em que ela exalta seu noivado a todo instante e fala exaustivamente sobre como as mulheres fazem de tudo para chamar a atenção dos homens.

 

 

Mas alguns poderiam argumentar: “Na verdade Elder Millennial é uma crítica ao que a sociedade espera do comportamento das mulheres. Shlesinger está sendo irônica.”

Este é um argumento válido. Em muitas obras utiliza-se da ironia para criticar aquilo que é retratado, como no caso de Crazy Ex-Girlfriend.

Só que habitualmente, para a ironia servir como instrumento crítico, deve-se partir de situações exageradas que deixem claro a intenção do autor. Senão, em vez de criticar alguns esteriótipos, podemos reforçá-los.

Entretanto, Iliza não fala absurdos. Do contrário, muitas de suas piadas são autobiográficas, como forma de aproximar a plateia e gerar empatia pelas situações expostas. Só que a falta de exagero torna menos clara a intenção crítica da comediante.

 

“Quando mulheres solteiras perguntam pra mim ‘Então, como vocês se conheceram?’, isso é menos uma pergunta genuína demonstrando interesse sobre mim, e mais como se elas estivessem procurando por pistas. Como quem diz, ‘Onde você encontrou um companheiro? Diga-nos os seus modos. Apoie suas garotas. Conte-nos o seu segredo.'”

 

Mesmo quando ela tenta acertar, ela erra. Ao falar sobre filhos, Shlesinger expõe que está tudo bem se alguma mulher não quiser ter filhos. Ela não precisa tê-los. Ela mesma nunca quis. Quando via que tinha crianças perto de seu assento nos voos, já ficava nervosa.

Até que ela fez 35 anos, e foi como se seu relógio biológico fizesse a comediante amar crianças, em uma tentativa de convencê-la a ter filhos.

Sua mensagem parece então incoerente. Ao mesmo tempo em que relembra as mulheres de que elas podem não querer ter filhos, ela passa a impressão de que, com o tempo, essa vontade virá naturalmente. Afinal, nem ela queria, e agora já acha que quer.

Elder Millennial não é um especial ruim. Tem seus momentos engraçados, Shlesinger é incrivelmente cativante e carismática, mas o stand up acabou não funcionando como uma crítica ao patriarcado. Se é que realmente era essa a sua intenção.

 

Apesar de serem stand ups feitos por mulheres e terem tido como pano de fundo questões feministas, Nanette e Elder Millennial tiveram abordagens completamente diferentes. Nanette acabou se distanciando de um especial de comédia, e se tornou quase um manifesto sobre autoaceitação e amor próprio. Já Elder Millennial é mais um stand up que serve como uma crítica – se ao patriarcado ou à maneira como a qual as mulheres se comportam, aí já é difícil precisar.

 

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Boo Mesquita

Geek de carteirinha e cinéfila, ama assistir a filmes e séries, ir a shows, ler livros e jogar, sejam games no ps4 ou boards. Quando não está escrevendo, pode ser vista fazendo pole dance, comendo fora ou brincando com cachorrinhos. Me siga no Instagram!

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