USS Callister | Deus Perverso, a morte do “Pai” e a filosofia do Absurdismo [Explicação]
O primeiro episódio da quarta temporada de Black Mirror, USS Callister, já chega mostrando ao que veio, abordando temas extremamente complexos e profundos.
Em uma camada mais superficial, fala de bullying, da cultura gamer muitas vezes tóxica e machista e de questões éticas a respeito da inteligência artificial. Na profundidade, uma miríade de questões abordadas na filosofia antiga, que focava no conceito do “Ser”, e na filosofia moderna, que se voltava para o conceito da “Verdade”.
Mas esse é o ponto forte de Black Mirror. Apesar dos episódios seguirem um fio condutor baseado em algum conflito criado pela relação humana com uma nova tecnologia, são verdadeiros contos abertos, que só se tornam completos com a participação do espectador, que lhe dá sentido e aprofunda a obra ao seguir as migalhas deixadas por cada episódio. Esta é uma resenha sobre algumas das migalhas que resolvi seguir a partir de USS Callister.
Vamos lá:
Deus é uma criança com uma fazenda de formigas
Para os tripulantes da nave USS Callister, clones de funcionários da Infinity, o Capitão Daly (Jesse Plemons – um sósia esquisito de Matt Damon) é a própria figura de Deus. E pior, o Deus do Velho Testamento.
Aos olhos do “Deus Perverso” do Velho Testamento somos todos pecadores. Sua figura é onipotente e punitiva, bastante diferente do Deus amoroso e misericordioso trabalhado posteriormente pela igreja. Sua primeira versão não tem compaixão e trata os humanos como seres desgraçados e miseráveis. Para este Deus, as pessoas precisariam desesperadamente reconhecer sua magnitude e dedicar sua vida a adorá-lo. Algo parecido com o que Robert Daly espera de seus funcionários na Infinity.
No entanto, ao olharmos a situação de fora, não vemos o mesmo Daly que os tripulantes da nave. Para nós, ele não é um Deus, mas apenas uma pessoa atormentada, exercendo o limitado poder que possui a seu bel prazer e de forma desequilibrada, para suprir seus tormentos pessoais e conquistar o nível de respeito que acredita ter direito. Daly ainda é uma criança, buscando elogios e um tapinha de aprovação nas costas. E como diria Constantine, “uma criança com uma fazenda de formigas”.
Não existe um plano, um objetivo maior. Este Deus apenas observa e interfere no mundo para satisfazer seus caprichos. Se Robert Daly não é o centro de seu universo na vida real, não há problemas. Ele mesmo cria um universo que possa girar em torno de si. A ferida narcisística que atormenta Daly é a mesma que todas as crianças em algum momento de sua vida enfrentam e superam: ela não é o centro do universo.
E a parte assustadora vem agora: será possível que nosso mundo tenha sido criado por um Deus que desejava satisfazer sua própria ferida narcisística e escapar de uma realidade que não atende às suas expectativas? Heavy shit.
A morte do “Pai”
Mais difícil que lidar com um mundo regido por um Deus Perverso, é encontrar sentido em um mundo sem Deus. E este é o dilema com o qual os personagens se deparam ao final do episódio.
Como dizem as palavras mais mal interpretadas da obra de Nietzsche: “Deus está morto”. O que nosso niilista preferido estava querendo dizer é que não há mais a necessidade de um Deus. A humanidade teria evoluído a ponto de superar essa necessidade de um “Grande Pai”, para quem se possa pedir ajuda em momentos de dificuldade. Afinal, a própria evolução da ciência nos deu ferramentas para controlar e agir não só sobre o corpo humano, mas sobre a natureza como um todo.
Quando os tripulantes conseguiram superar seus limites e traçar um plano cujo principal objetivo era o suicídio, algo inesperado aconteceu. Eles não morreram, mas acabaram saindo do servidor fechado de Daly e indo parar na “nuvem”, ou seja, no servidor geral onde todos os jogadores da plataforma Infinity se divertem. Neste novo universo, já não mais existe um Deus Perverso e todo poderoso, mas sim um mundo regido pela própria moralidade de seus habitantes.
No entanto, um mundo sem Deus é como uma criança sem a figura paterna, que lhe impõe limites. É um mundo sem punição, sem a castração de instintos e vontades. Essa metáfora é abordada de forma bastante explícita, considerando que no servidor privado de Daly – o Deus punitivo -, os tripulantes da USS Callister não possuiam orgãos sexuais. Foram literalmente castrados.
De acordo com a teoria psicanalítica de Freud, a influência da figura paterna no desenvolvimento psicossexual teria como principal consequência a introjeção da culpa no indivíduo. De forma resumida, é a figura paterna que limita nossos impulsos. É quem nos impede de simplesmente fazermos o que queremos quando crianças. E principalmente freiar os primeiros impulsos sexuais: “tira a mão daí menino, que isso é coisa feia”.
Claramente não é à toa que as religiões se referem a Deus com a metáfora do “Pai”, aquele que impões limites e aplica punições a maus comportamentos.
Sem a figura paterna de Deus, a única consequência de nossos atos são os limites da nossa própria moralidade, a chamada “regra de ouro” ou lei da reciprocidade: não faça com os outros o que você gostaria que fizessem com você. No entanto, esse sentimento de culpa pelos próprios atos pode variar de pessoa para pessoa, e se torna especialmente complexo ao considerarmos o mundo fictício de um jogo onde as consequências de nossos atos não são permanentes, e nem ao menos olhamos as outras pessoas nos olhos, o que poderia ajudar a gerar uma empatia, a considerar o outro como alguém passível de ser magoado.
Absurdismo
A segunda consequência da “morte” de Deus é a ausência de sentido no mundo. Estaríamos todos largados a nossa própria sorte, com um universo infinito de possibilidades a serem exploradas e nenhum manual. É exatamente o que acontece ao final do episódio e em qualquer jogo MMO (massive multiplayer online).
Nesse tipo de jogo um número massivo de jogadores convive em um mesmo servidor, regido por dinâmicas específicas, e interagem sem necessariamente regras prévias de conduta, o que permite comportamentos bastante agressivos por parte dos jogadores, como o que acontece quando a USS Callister se depara com o capitão de uma outra nave, sedento por recursos (curiosidade: a voz do capitão da outra nave é de Aaron Paul, o Jesse de Breaking Bad).
Nos MMOs, cada pessoa acaba tendo uma motivação diferente para continuar jogando. Alguns jogam para ser os mais poderosos, outros se interessam mais pela possibilidade de explorar um mundo totalmente novo. E outros ainda apenas para interagir com outros jogadores.
Voltando ao review do episódio, temos a tripulação à deriva no espaço, se encontrando agora livre das garras de Daly, mas sem nenhum objetivo ou sentido para as suas existências. Isso nos remete ao Absurdismo, um conceito filosófico que faz referência ao conflito no qual o ser humano se encontra: temos a tendência de buscar um significado inerente às nossas vidas, mas seria humanamente impossível encontrá-lo.
O maior símbolo do absurdismo é o mito de Sísifo. Ao desafiar os deuses, Sísifo foi condenado a passar a eternidade empurrando uma grande pedra até o topo de uma montanha, apenas para vê-la rolando para baixo e ter de começar tudo novamente. Como Sísifo não deseja a morte, aceita passar a eternidade executando uma tarefa repetitiva e sem sentido (nesse momento você pensa no seu trabalho e chora rs).
Até quando os personagens aguentariam a rotina de viajar pelo universo e combater criaturas malignas em planetas estranhos? Ao contrário do Mito de Sísifo, na série eles não teriam nem a opção de morrer, já que no jogo Infinity isto é impossível. Eles estão realmente condenados a viver a eternidade repetindo as mesmas tarefas.
Como seriam os próximos capitulos de USS Callister?
A complexidade das temáticas tratadas em USS Callister com certeza é grande o suficiente para sustentar uma série própria, assim como Westworld, que possui uma premissa bastante parecida. O fim do episódio nos deixa com diversas questões não respondidas nesta resenha, e uma forte curiosidade sobre como seria esta nova vida dos personagens da nave.
Ao habitar o servidor com outros jogadores, como se daria essa interação? Apesar de não poderem morrer, os personagens podem sim sentir dor física, diferentemente dos outros jogadores. Isso poderia gerar conflitos interessantes, além da busca dos personagens por uma vida com sentido, enquanto os outros jogadores estariam apenas se divertindo.
Outra parte não explorada da história é a questão do crime cometido pelos tripulantes da nave. Robert Daly é morto através do plano comandado por eles. A pergunta é: eles poderiam ser punidos por este crime, considerando que são seres clonados e criados por inteligência artificial?
Black Mirror nos sugere que sim.
No episódio Hated in the Nation, da terceira temporada, vemos um easter egg na TV em uma das cenas. Em um noticiário, vemos o informe de que a ECHR (European Court of Human Rights) teria decidido que os “cookies” teriam sim diretos humanos. “Cookies” é como os clones criados por inteligência artificial são chamados no episódio White Christmas, em que são criados para operar os sistemas de uma casa inteligente e atuarem como assistentes pessoais.
A notícia na TV sugere que a Corte de Direitos Humanos da Europa tenha avaliado que os clones, por serem seres dotados de consciência, também sofrem e devem ter seus direitos preservados. Mas se um “cookie” pode ter direitos, isso implica que também deveria ter deveres, e viverem seguindo a lei. No caso de USS Callister, por serem capazes de atuar no “mundo real”, eles deveriam então ser punidos pelo assassinato de Robert Daly e pela chantagem com as fotos privadas de Nanette Cole.
No entanto, como seria aplicada a punição a eles? Já não seria a vida deles punição suficiente?
Meu, isso é muito Black Mirror.
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É intrigante… Clones digitais com direitos e deveres! Os robôs humanizados da ficção científica (Asimov, p. Ex) têm uma existência corpórea, estão localizados em uma máquina (com aparência humana ou não). Aqui esse “vida” digital está em um ecossistema muito mais fluido que é a nuvem e não precisam de um “corpo” para existir.
Obrigado pelo comentário, Lucia!
Também sou muito fã de Asimov e dá pra fazer bastante relações entra as obras dele e toda a situação dos “cookies”. Talvez valha um post! =)
Achei sua resenha simplesmente magnífica.Ao decorrer do ep, tive um misto de emoções.Num primeiro instante, senti pena do personagem principal.Porém, ao saber o que ele fazia na uss calister experimentei uma extrema fúria.Mas no final, pude olhar a moral da questão:O capitão é um ser atormentado, ao mesmo tempo que humilha os tripulantes da uss calister, é humilhado na vida real por seus colegas de trabalho.Tudo isso, num ciclo vicioso de ódio.Por fim, gostei do ep e da sua temática sobre a moralidade.
Oi Fábio, obrigado pelo comentário!
Realmente o episódio nos dá “mixed feelings” em relação ao Daly. Ainda levanta uma questão: será que ele era realmente humilhado pelos colegas de trabalho?
Talvez eles fossem apenas indiferentes, mas Daly possivelmente já era complexado e esperava que eles o dessem mais atenção. Apenas teorias rs
Abraço!
Não vou dizer que era humilhado, mas havia sim um isolamento. A mulher que ao conversar com a novata, aconselhando ela a não manter contato com o cara. E a confissão do colega de trabalho dele, que antes de se suicidar admite que não o tratava com coleguismo, e sim como um escravo, explorava a genialidade dele sem dar o reconhecimento e o tratamento correspondentes, mas a seguir o condena pelo fato de Dale “matar” seu filho na frente dele. O cara era complexado sim, mas os colegas de trabalho dele o ignoravam acintosamente e nem procuravam se aproximar do cara, talvez dando uma chance a ele de se integrar. Era tipo: “o cara é estranho, vamos nos manter afastados”. É mais ou menos o que acontece em nossa sociedade.
Curioso como a vida eterna tão desejada pelos humanos, praticamente o objetivo da “salvação” pode ser uma maldição. A vida eterna só passa a fazer sentido frente a sua alternativa , segundo as religiões, o eterno martírio pelo fogo. Achei interessante o conflito ético que surge quando se puder entrar num mundo digital de imersão. Às vezes nos sonhos temos a possibilidade de perceber que estamos sonhando e nessa posição vem a tentação de fazer coisas que não faríamos na realidade. Quem vai nos impedir de nesse mundo soltar nossos demônios e estuprar nossas colegas, torturar e assassinar desafetos…? se somos somente bons ou bestas adestradas, essa pergunta será respondida.
Profundo, Arthur! Realmente em nossos sonhos estamos na posição de deuses, assim como ans simulações digitais.
Abs!
Marcos, sua resenha está maravilhosa!!!! Trouxe várias coisas que eu não tinha pensado! E, como sempre, super bem escrita! Adorei! 🙂
Valeu, Maísa! =)
Bjs,
Além das referencias filosóficas, percebe-se também nitidamente elementos gnósticos, a presença de um Demiurgo, a realidade como ilusão programada e o mito da queda. Foi tão claro a relação com a religiosidade no episído que em certo momento ele usa a expressão Bíblico para ameaçar os outros, referindo-se ao Deus perverso sim, mas mostrando como a religião se utiliza de artimanhas dominadoras para se estabelecer
Obrigado pelo comentário, Roger! Trouxe boas questões, vou me aprofundar nesses temas! =)
Excelente resenha. Expressa com precisão a abordagem filosófica e crítica do episódio. Contudo, discordo da Interpretação superficial e estereotipada dos roteiristas e, por consequência, do articulista, acerca do Deus do Antigo Testamento. Ele é mais complexo do que se imagina. Recomendo a leitura do livro Teologia do Antigo Testamento de Walter Brueggemann. Em relação ao universo expandido de Black Mirror, os cookies, ao chantagearem a funcionária nova da Infinity, estariam linkados ao episódio daquele garoto hackeado e chantageado?
Obrigado pelo comentário, Lucas! Buscarei conhecimento!
Segundo entrevista do Charlie Brooker, os episódios seria histórias isoladas e não existiria um universo expandido de Black Mirror. Só que esse depoimento não bate muito com o episódio “Black Museum”, né?
Abs,
Talvez o autor desta publicação seja ateu, ou apenas gosta de “cutucar” o Cristianismo alheio. Usando a palavra “deus” com “D” maiúsculo para ter duplo sentido entre o personagem da série e com o Deus da Bíblia (ao menos foi assim que eu interpretei).
Usando como pretexto para comentar indiretamente ou não, suas opinião a respeito de Deus (Jeová).
A Bíblia é complexa e não basta simplesmente falar algo superficial a respeito de Deus. Em todas as punições, há todo um contexto, uma história. Pois Deus é Justiça, mas também é Amor!
Enfim, tinha outros pontos que iria mencionar, mas não o farei.
Obrigado pelo comentário, Gustavo!
O bom de Black Mirror é isso, permite diversas interpretações e papos bem profundos. Cada um leva suas interpretações para o caminho de suas referências anteriores.
A única coisa que não podemos dizer é que é uma série superficial!
Abs!
Cara, impressionante como cristãos são intolerantes. Não se pode falar NADA de Deus que eles já vem espumar.
Eu tive a minha conclusão com o mesmo sentido da sua ,mais no lugar de Deus eu coloquei o ser humano que quando está em um nivel superior “economicamente falando” é sempre arrogante e intolerante ,e as pessoas quando dependem delas sofrem na pele ,ou concordam ou passam mal
Verdade… Do Complexo de Deus à Síndrome do Pequeno Poder, o ser humano não se cansa de mostrar sua intolerância e arrogância.
Eai que voltando a parte em que o autor fala sobre a ferida narcísica do: “vc não é o centro do universo” me encontro eu, alguém com 22 anos que cresceu vendo desenhos, filmes de heróis e lendo livros em que o protagonista:
-encontra um inimigo,
-usa variados poderes fantásticos pra derrotar o inimigo,
-dá a entender que é muito fodão,
-suas lutas são bonitas visualmente,
-no final recebe um tapinha nas costas de toda a cidade que destruiu lutando, com palmas, admiração, agradecimentos e uma mocinha perfeita pra transar vivendo felizes p sempre.
Devido a n histórias que absorvi, a minha cabeça entende que esse é o curso natural da vida, que EU SOU ESPECIAL, que eu tenho que encontrar um inimigo, usar meus poderes numa luta bem bonita e que as pessoas vão gostar de mim. O que é impossível de acontecer na vida real e me leva pra um mundo imaginário, onde eu sou invencível, solto kamerameha no café da manhã, mato um mago de 3m de altura que esta invocando lucifer no almoço e paro uma onda gigante com telecinese a tarde.
Quero dizer, ao invés de viver minha vida, prefiro estar num mundo imaginário fazendo coisas não proveitosas pra minha pessoa. Que inclusive fazem mt mal pro meu corpo e saúde psíquica, devido a tensão, estresse, medo, ansiedade, etc que meu corpo experimenta ao “lutar” no mundo imaginário.
Minha ansiedade evoluiu pra TAG, SPA, depressão e ataques de pânico e nunca tive coragem de contar pros meus terapeutas sobre esse mundo imaginário, de tão ridículo que ele pode soar, mas é meu vício e estou tentando me curar dele.
Em USS Callister, eu sou o capitão, alguém _deslocado_ no mundo real, com dificuldades de socialização e que não vê a hora de chegar em casa pra entrar no jogo, entro no jogo faço o que eu quero sem ligar p consequências, pq sei que é impossível que elas me afetem no mundo real.
VRA
Suas análises são excelentes! Muito bom ter encontrado este site!
Mas aqui, neste episódio, apesar de saber que o tema bullying faz parte de uma análise um tanto mais superficial, sempre me peguei pensando que qualquer pessoa que tivesse a mesma oportunidade do Robert Daly faria o mesmo, certeza. Quem é que não tem (ou teve) um colega escroto como aquele James Walton? kkk
Oi, Marcos!
Surgiu uma dúvida. Você cita a morte do Daly e sobre isso fiquei muito confusa.
Por que ele teria morrido? No jogo, a versão virtual dele teria sido apagada, correto? Mas não compreendi o porquê de sua morte.
Outro fator que causou confusão para mim foi a necessidade de enviar Cole à casa dele para coletar os itens com DNA. Afinal, por que o autor do episódio incluiria isso na história se a morte dele seria o resultado da intervenção feita pela tripulação?
Talvez eu tenha piscado demais ao assistir o episódio e não tenha compreendido bem isso.
No mais, achei ótima a sua publicação. Bastante esclarecedora.