Westworld | Caverna de Platão: o real é mesmo insubstituível?

Westworld é uma série extremamente complexa. Às vezes até demais.

No entanto, não podemos tirar seu mérito em “reler” alguns dos mais importantes temas da filosofia, como a mortalidade, as questões éticas e morais, as motivações para o comportamento humano e ilusão de livre arbítrio, integrando-os com questões modernas como a inteligência artificial e a privacidade de dados. Tudo isso em uma série recheada de ação e com atuações primorosas.

Dentre estas temáticas, há uma questão em especial que tem perpassado as duas primeiras temporadas da série, e ao que tudo indica continuará sendo o fio condutor na terceira temporada: a busca pela verdade.

Este tema fica bastante claro através da contraposição entre a realidade e simulação, que ao início da série é abordada na figura do parque de Westworld em oposição ao mundo real dos humanos que o visitam. Ao logo da série, entretanto, vemos que a coisa é ainda mais complicada e novas camadas da cebola nos vão sendo apresentadas.

Enquanto Pinóquio busca ser um menino de verdade, Dolores busca a realidade em si. Ainda que não se incomode em não ser humana de verdade.

E apesar da personagem entender que a inteligência artificial é uma nova raça, não deseja confinar a sua existência a um mundo artificial, pelo contrário. Dolores compartilha a visão de Ford e se enxerga como uma evolução da raça humana, e por isso busca uma realidade ainda mais verdadeira que a vivida por nós.

Diante da tamanha profusão de temas em Westworld, focaremos a análise a partir daqui nas discussões sobre o tópico realidade versus simulação. Esta parece ser a questão central na série, explorada desde o início através da saga de Dolores Abernathy, enquanto os outros temas aparecem de forma mais adjacente.

O que nos leva a pergunta: a realidade seria mesmo insubstituível?

Você já questionou a natureza de sua realidade?

A questão levantada por Dolores em Westworld é uma das mais antigas e recorrentes na existência humana. Não à toa é abordada desde a filosofia antiga, e se torna mais atual do que nunca com o avanço de tecnologias que prometem criar mundos e experiências indistinguíveis da realidade.

Chuang-Tzu, filósofo taoista chinês do século IV A.C., confidenciou a seu amigo um sonho em que teria se transformado em uma borboleta. O sonho havia sido tão vívido e real que após um tempo nele o filósofo tinha esquecido completamente ter sido um dia Chuang-Tzu. Ao contar o sonho ao seu interlocutor, confessou ter ficado com uma questão existencial em sua mente:

Seria ele Chuang-Tzu, que havia sonhado ser uma borboleta, ou na verdade seria uma borboleta, que naquele momento sonhava ser Chuang-Tzu?

O fato de sonharmos não exatamente nos separa de outros animais, já que mamíferos e aves também sonham. No entanto, somos os únicos seres que tomam consciência e elaboram em cima de nossos sonhos. Este fenômeno do sonhar (e talvez alucinações causadas por doenças ou substâncias alucinógenas) pode ter sido o primeiro contato que tivemos, enquanto seres humanos, com um simulacro da realidade.

Um simulacro, de acordo com o tratado filosófico de Jean Braudrillard, em Simulacros e Simulações, corresponde a uma cópia imperfeita da realidade, uma representação que tenta dar veracidade a algo que não é, de fato, equivalente ao real. Além de Westworld, diversas obras já exploraram este conceito, de um ambiente de ilusão sensorial que tenta reproduzir a realidade, como Matrix (1999), Vanilla Sky (2001), Jogador Nº 1 (2018), e os episódios San Junipero e USS Callister de Black Mirror, para citar alguns exemplos.

Este conceito nos causa tanto fascínio que alguns empreendedores de tecnologia, entre eles Elon Musk (fundador da Space X), acreditam fielmente que existe uma altíssima probabilidade de estarmos vivendo em uma simulação. Em uma entrevista, o investidor Sam Altman, afirmou que dois bilionários do Vale do Silício (e Elon Musk seria um dos suspeitos) chegaram ao ponto de financiar pesquisas secretas cujo objetivo era nos libertar da simulação em que vivemos.

Para estes, o processo de “escapar” desta ilusão sensorial que chamamos atualmente de realidade teria um viés de libertação. Nos depararíamos com uma existência ainda mais vívida e radiante. É possível que nesta passagem percamos tudo que possuímos e acreditamos ser real nesta vida, como família, filhos, casa, emprego etc., mas nesta lógica, isto não importa. Afinal, seria tudo uma ilusão, e como afirma Dolores, “o real é insubstituível“.

Neste ponto, Dolores atua como uma autêntica filósofa, para quem a busca pela verdade é a empreitada mais justa e fundamental na vida.

A ambição da personagem faz um paralelo interessante com as ideias de Descartes, autor da célebre frase “penso, logo existo”. Sua defesa era de que para entender a essência das coisas, precisaríamos nos desprender dos conhecimentos e hábitos que adquirimos ao longo de nossa vida, e tentar explorar o mundo através de nossos sentidos, para se chegar as coisas como elas seriam de fato.

Para além de nomes parecidos, o paralelo entre Descartes e Dolores é bastante intrigante, já que a personagem e os outros anfitriões só se libertam e desenvolvem consciência no momento em que desapegam de suas “narrativas”, ou seja, das programações algorítmicas que resultam em seus conhecimentos prévios e hábitos.

A partir do momento que “pensam”, ou seja, desenvolvem uma consciência, logo “existem”, entendendo que vivem em um simulacro e podem passar a tomar decisões próprias.

É o processo de quebra das correntes.

A Caverna de Platão em Westworld

“Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem.”

A frase de Rosa Luxemburgo, filósofa marxista polonesa, faz referência à nossa dificuldade em perceber que muitas vezes estamos presos por correntes que nem sabemos que existem, pois seguimos nossa vida conformados e presos a nossos hábitos.

A metáfora também é utilizada na filosofia de Platão, em um de seus textos mais conhecidos, a Alegoria da Caverna. A alegoria tem como objetivo estimular a busca por conhecimento, através de um processo de libertação das correntes da escuridão, que nos impediriam de ver a luz da verdade.

Essencialmente a saga da personagem Dolores na série.

A Alegoria da Caverna de Platão parte do seguinte pressuposto: suponhamos que dentro de uma caverna vivam seres humanos, que nasceram e ali permaneceram por toda sua vida, sem nunca terem conhecido o lado de fora. Acorrentadas, essas pessoas permanecem de costas para a entrada da caverna, e não conseguem olhar para trás, apenas para a parede no fundo da caverna. Também não são capazes de olhar para os lados e visualizar seus colegas aprisionados nesta caverna.

No conto, os “prisioneiros” conseguem apenas observar as sombras do mundo real no fundo da caverna. Contudo, como nunca tiveram contato com o mundo de fora, acreditam que aquelas sombras projetadas sejam a própria realidade. Não sabem que são apenas um simulacro, uma cópia imperfeita do mundo.

Em sua alegoria, Platão desejava mostrar o quanto vivemos nossas vidas comodamente, sem buscar a verdade por trás das coisas. A força da metáfora é tão grande que pode ser aplicada a inúmeros contextos, como nosso hábito de assistir televisão, jogar vídeo games ou simplesmente acreditar em todas notícias que vemos no Facebook.

O mundo de Westworld é uma caverna para os robôs anfitriões que lá vivem. Estes acreditam que aquela é a realidade, e vivem suas vidas presos a correntes que nem sabem que existem: suas narrativas.

Mas o mito contado por Platão continua. O filósofo nos convida a imaginar uma situação em que um dos prisioneiros consegue se libertar das correntes e foge para fora da caverna. Em primeiro momento, a luz do sol iria ferir seus olhos, causando desconforto. Assim como nos sentimos quando entramos em contato com informações que vão contra nossas crenças mais profundas. Relutamos em aceitá-las, e sentimos vontade de voltar para a nossa “caverna”. No entanto, caso o fugitivo insista em um período de adaptação, irá se acostumar e se deslumbrar com aquele novo mundo, a ponto de se questionar como foi possível viver na escuridão por tanto tempo.

Em Westworld temos uma virada interessante. Enquanto os anfitriões despertam uma consciência e desejam sair do mundo artificial (ou seja, da caverna), temos os visitantes que desejam o caminho contrário: fugir do mundo real e se infiltrar no simulacro que é o parque, buscando a fuga para uma realidade fabricada. A crítica é bastante interessante, já que o senso comum seria que robôs não se incomodassem em viver em uma simulação, enquanto humanos deveriam sempre buscar a verdade.

Na alegoria de Platão, temos duas opções para o fugitivo. A primeira, é o fugitivo que não aguenta o confronto com a realidade e o desconforto gerado a partir do questionamento de suas crenças e prefere voltar para dentro da caverna. A segunda, seria a volta do fugitivo para libertar os outros.

Agora que ele teria descoberto o mundo real, não poderia permitir que outras pessoas vivessem em um mundo ilusório. Ao voltar e tentar contar aos outros prisioneiros o que viu, seria recebido com descrença. Os companheiros talvez considerassem que o retornante teria ficado louco por sair da caverna e, mais do nunca, lutariam para não sair da escuridão. Poderiam chegar ao ponto de tentar matar quem quer que tentasse tirá-los de dentro da caverna.

Dolores faz o papel do fugitivo que, por ter descoberto a realidade, se esforça para despertar a consciência dos outros e libertá-los daquela condição.

De certa forma, Dolores é uma revolucionária, cujo objetivo é quebrar as correntes dos anfitriões aprisionados em Westworld. Neste processo, age de forma vingativa e manipuladora, pois sua mente é bicameral, ou seja, roda dois programas ao mesmo tempo. Conforme a programação feita por Robert Ford, na nova narrativa do parque, a mente da personagem comporta a narrativa de Dolores e do perverso Wyatt.

Por outro lado, temos Maeve, que também atua como uma figura de liderança entre os anfitriões. A personagem, entretanto, tem mais dificuldade de se libertar de suas próprias correntes, representadas pela narrativa de sua filha. Maeve consegue escapar para o mundo real, mas acaba voltando ao parque em busca de sua filha.

No encontro entre as duas personagens, Dolores tenta despertar o senso de vingança de Maeve, convidando-a a se juntar a causa, em uma tentativa de libertá-la das correntes que a prendem. No entanto, Maeve não está interessada.

Algumas correntes são mais pesadas que outras.

A Caverna de Platão intensifies

Aqui voltamos a perguntar: Westworld precisava ser tão complexa?

A construção da série na dicotomia entre robôs tentando fugir de uma vida ilusória e humanos tentando voluntariamente se prender a uma é muito rica. No entanto, na segunda temporada de Westworld a alegoria se complexifica, com a descoberta do “Valley Beyond”, ou o “Além do Vale”.

Ao longo desta temporada, vemos que de alguma forma o mito do “Valley Beyond” parece estar presente na mente de todos os personagens anfitriões, como uma espécie de Jardim do Éden. Isto fica bastante claro na peregrinação dos índios da Nação Fantasma em busca do “Além do Vale”, mas também na fala de outros personagens, como Lawrence, que se refere ao local como os “portões perólados”.

Para Dolores, no entanto, a ideia do “Valley Beyond” é associada o tempo todo à liberdade. É sua melhor aposta para escapar da caverna que se encontra atualmente. Sua saga, portanto, é para reunir com Teddy um grupo fiel e partir em busca do portal para este mundo.

Ao se deparar com “Além do Vale”, no entanto, a personagem entende que o paraíso virtual criado por Ford para que as “mentes” dos anfitriões possam desfrutar de uma vida eterna, não seria exatamente uma libertação.

Bernard diz a Dolores que o Vale é um lugar sem limites, onde seus companheiros podem finalmente ser livres. Dolores, por sua vez, responde: “nenhum mundo que eles tenham criado para nós pode competir com o mundo de verdade”. Quando Bernard lhe pergunta por que, ela responde: “por que o que é real é insubstituível”.

Neste ponto, Dolores percebe que o “Valley Beyond” não se trata de liberdade, mas de uma caverna ainda mais profunda, mais distante do mundo real. Westworld adiciona, com o Vale, uma nova camada à alegoria da Caverna de Platão.

E novamente temos uma separação entre Dolores e Maeve. Enquanto Dolores ao se confrontar com o “Além do Vale” entende que se trataria de uma nova caverna, ainda mais profunda e escura que a anterior, Maeve decide se distanciar ainda mais da realidade, em busca de uma vida de ilusão no Vale, contanto que garanta a segurança de sua filha.

Não podemos julgá-la. Tão pouco os outros que vivem uma vida que consiste em um looping de sofrimento. Um lugar idílico como o Vale parece ser digno de uma morte “física”, atravessando o portal para um upload de sua consciência em busca da vida eterna. Para os anfitriões, esta transição pode parecer uma “ascensão”, ainda que Dolores tenha percebido que a ilusão não é uma fuga real da caverna que é Westworld.

A personagem segue então em sua fuga para o mundo humano, conseguindo finalmente escapar com Bernard. E leva consigo a consciência de mais alguns anfitriões.

Terá Dolores chegado à sua tão sonhada realidade insubstituível?

Não seria de se espantar que, em uma nova virada de roteiro, estes anfitriões viessem a descobrir que a realidade humana é apenas mais uma simulação. A revelação viria ao encontro da teoria de Elon Musk, de que nosso mundo não passaria de uma simulação computacional. É claro que a narrativa ficaria ainda mais complexa.

Mas não é isso que Westworld vem fazendo até aqui?

A hipótese da existência de uma realidade além da nossa compreensão sensorial não seria algo novo. Em diversas culturas e religiões existe a suspeita de que nossa realidade seja apenas um estágio transitório. A diferença é que esta hipótese hoje nos é apresentada à luz das tecnologias de computação atuais, em oposição a princípios oníricos ou teológicos muito usados antigamente.

Talvez ciência e magia não estejam tão distantes assim. Como diria o escritor de ficção científica britânico Arthur C. Clarke, qualquer tecnologia suficientemente avançada torna-se indistinguível da magia.

Quem sabe não tenha chegado a hora de questionarmos a natureza de nossa realidade?

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