Noite de Lobos | O instinto animal presente em nós

Atenção! Esse texto contém spoilers de Noite de Lobos

A Netflix sempre foi alvo de críticas por parte dos cinéfilos em relação ao seu catálogo de filmes originais. No último ano, a distribuidora vermelha resolveu acordar para isso investindo em longas de alguns nomes consagrados do cinema contemporâneo e mundial (Martin Scorsese, Alfonso Cúaron, Paul Grengrass) e também apostando em nomes recentes dentro do mercado, como é o caso de Jeremy Saulnier.

O cineasta tinha realizado duas obras anteriormente: Blue Ruin e Sala Verde, ambas bastante aclamadas pela crítica e o público em geral. Chegando ao canal de streaming, Saulnier resolveu arriscar em um trabalho diferenciado, altamente interpretativo e discutível pela audiência, algo que a própria Netflix parece adorar e incentivar. Apesar de não ser inovadora, Noite de Lobos é uma produção que gera diversas reações posteriores ao ato de simplesmente assistir. O filme abre espaço para discussões bem mais profundas do que inicialmente poderíamos prever. E talvez por isso não tenha sido bem recebido por parte do público.

 

Noite de Lobos e suas interpretações

A trama da película, a priori, parece ser bastante clara e de fácil entendimento. Um menino desaparece misteriosamente e sua mãe, Medor, (Riley Keough), culpa uma alcateia de lobos de ter levado o garoto. Dessa maneira, ela resolve chamar o escritor Russel Core (Jeffrey Wright), estudioso sobre esses animais, para ajudar na investigação do caso. No meio disso tudo, o pai da família, Vernon (Alexander Skarsgard), retorna da guerra do Iraque após sofrer um ferimento no seu pescoço. É aí que Core descobre mistérios e estranhos comportamentos dentro da região.

Como já mencionamos que esse texto é uma zona amigável a spoilers, detalharemos aqui a principal interpretação sobre o maior mistério do longa.

 

 

É importante começar avisando que Medora e Vernon são irmãos. Isso acaba por ser salientado no diálogo “não lembro de nenhuma memória sem ele” e na utilização da máscara de lobo. A obra em si não fala explicitamente sobre isso, o que acaba dificultando a percepção deste fato.

Devido a essa relação de incesto entre o pai e a mãe e à analogia com os lobos, eles não possuem tantos comportamentos racionais e agem, nas mais diversas ocasiões, pelo simples instinto. É por este motivo que Vernon mata diversas pessoas de maneira brutal e Medora assassina seu próprio filho. Aliás, há um prelúdio para esta ação, que nos antecipa o que está por vir, quando é mostrado Russel olhando para uma família de lobos comendo o próprio filhote. Posteriormente, o escritor relata que comportamentos assim ocorrem “em momentos de escassez”, já comprovando a não culpabilidade dos animais na morte do garoto.

Essa conexão animalesca ainda denota o fator da liderança do bando que o escritor passa a exercer. Ao final, quando esse diz que contará a história para sua filha, é como se transmitisse a continuidade dessa linhagem da maneira humana, porém sem perder suas características fora da razão. Sua liderança mostra-se ainda mais clara quando os lobos não o atacam, mesmo com sua vulnerabilidade, e no simples respeito que o “lobo solitário” Vernon possui por ele, nunca o matando. A mesma obediência pode ser vista quando Core salva um jovem policial no momento do tiroteio, dando um grito de “Pare!” para o atirador, que o respeita no exato instante. A representação é próxima ao papel de um ancião em uma aldeia menor. Ele é um sábio, e como um mestre transmite seu conhecimento sobre os bichos adiante.

A transmissão de informação e conhecimento por meio de contos e histórias também é abordada em Noite de Lobos, por meio da cultura indígena. Diferente de longas como Terra Selvagem, a questão dos indígenas presentes na região do Alasca acaba por ser perpassada de leve, já que este não é o foco do filme. Porém, esse povo não é esquecido. A terra/vila objeto de todos os 125 minutos do filme torna-se uma pequena demonstração de todos os humanos, sejam eles mais instintivos, “civilizados”, antigos ou do futuro.

Não se pode esquecer também do título original Hold the Dark (algo como Segure a Escuridão, em tradução livre). É como se ele fizesse uma remissão à própria atitude de seus protagonistas, já que eles também buscam maneiras de lidar com essa escuridão inerente ao ser humano.

Essa escuridão pode ser vista por dois aspectos. De forma negativa, a escuridão presente na raça humana permite que a irracionalidade aflore fácil, fazendo jorrar toda a agressividade. No lado positivo, entretanto, a escuridão confere rigidez à nossa espécie, nos tornando mais inabaláveis, e conectados com nossos instintos.

 

O homem é o lobo do homem

noite de lobos - filme netflix

 

Para além dessas concepções mais concretas e interpretativas sobre Noite de Lobos, existe um quesito filosófico e científico passível de ser explorado. Para isso, retornaremos ao pensamento do autor inglês Thomas Hobbes com a sua famosa frase “o homem é o lobo do homem“. Nela, Hobbes demonstra que o maior inimigo do homem só pode ser o próprio homem, capaz de realizar ações totalmente condenáveis, como exterminar seus pares.

A similaridade com a película em si começa pelo fato da representação dos lobos. Ao comparar os humanos com estes caninos, considerados perigosos e selvagens, o filme nos remete à noção de que por mais que tentemos nos esconder na civilidade, o ser humano sempre será essencialmente um animal, com instintos e vontades próprios.

Noite de Lobos faz ainda outras provocações. Se o que nos torna seres humanos é nossa racionalidade, o que acontece quando essa é perdida? Ainda somos humanos quando a emoção age de tal forma a não possuirmos mais controle sobre nossos corpos?

Em Leviatã (1651), uma das grandes obras do pensamento político e filosófico da história, Hobbes propõe que, para a paz reinar dentro da sociedade, deveria haver um contrato social entre a população e o Estado. Neste contrato, caberia ao Estado o cuidado e o zelo por nossa civilidade. Elementos que demonstrassem um comportamento antissocial deveriam ser excluídos da sociedade em prisões. Lá, buscariam recuperar sua moralidade perdida. Assim, com este contrato, a população abre mão de parte de sua liberdade em prol de objetivos em comum, como a segurança.

Essa condição se reverbera no pensamento do sociólogo contemporâneo Zygmunt Bauman, que diz que nenhum governo conseguiu ter um equilíbrio perfeito entre liberdade e segurança. Sempre há uma priorização de um dos lados, o que repercute na perda do outro.

 

Alexander Skarsgard em Noite de Lobos

 

Trazendo todo esse contexto para Noite de Lobos, verifica-se no longa que a maioria de seus personagens representa uma ruptura com a ordem moral vigente. Só que, para eles, não existe a prisão, visto que são lobos. E como seres selvagens, vivem sua eterna liberdade alheios ao maquinário estatal e conceitos morais presentes em nossa sociedade. Assim como os animais, o casal de protagonistas “deglute” o próprio filho. Eles realizam um ato de quebra do contrato social, renegando com isso tudo o que a sociedade representa.

Com essa crítica, o diretor Saulnier retrata pessoas que vivem à margem de nossa sociedade, e que acabam por ter suas liberdades tolhidas por ela. Direitos humanos nem sempre são cumpridos, como no caso de refugiados, mulheres em países teocráticos, comunidades LGBT em diversas nações do mundo, negros em tantos outros, e muito mais.

Hobbes ficaria impressionado se visse que séculos após seus estudos, ainda há muitos lobos em nossa sociedade lutando por igualdade e liberdade.

 

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Cláudio Gabriel

Estudante de jornalismo e apaixonado pelo mundo nerd desde que viu Star Wars pela primeira vez. Cinéfilo até o fio da cabeça, é aquela pessoa que gosta de indicar os filmes mais diferentes possíveis. Criador do Senta Aí. Me siga no Twitter!

One thought on “Noite de Lobos | O instinto animal presente em nós

  • 3 Novembro, 2020 at 0:06
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    Gosto muito se filmes controversos e que nos deixa pensando após o final. Esse foi um deles. Eu tinha me tocado que eles viviam como lobos, mas sua análise foi maravilhosa.
    O lobo é o lobo do homem.
    E nesse interir, escolhemos entre sermos humanos ou abraçar essa escuridão e sermos lobos.
    Obrigado pela maravilhosa análise e ajudar a mim e minha esposa a entendermos melhor o filme.

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