Smithereens | Redes sociais e a Sociedade do Espetáculo [Explicação]

Mais uma vez, Black Mirror faz uma crítica à cultura das redes sociais em Smithereens, segundo episódio da 5ª temporada da antologia.

Mas diferente de outras abordagens, como em Nosedive, o assustador do novo episódio é que ele trata do tema utilizando todas as tecnologias que já existem em nossa sociedade.

Dirigido por James Hawes (à frente também de Hated in the Nation) e com o roteiro assinado pelo showrunner de Black Mirror Charlie Brooker, Smithereens nos apresenta a Chris (Andrew Scott), um nervoso motorista de um aplicativo semelhante ao Uber. Por motivos obscuros, Chris sequestra Jaden (Damson Idris), um estagiário da companhia Smithereens, rede social semelhante ao Twitter.

Como resgate, o motorista tem apenas um requerimento: falar por telefone com o CEO da gigante Smithereens, Billy Bauer (Topher Grace).

Com o desenrolar do episódio, compreendemos as ações de Chris como uma crítica à obsessão humana de enxergar o mundo pela tela do celular, sempre verificando novas notificações em nossas redes ou likes em nossas fotos.

 

Atenção, pois os próximos tópicos desta análise contêm spoilers de Smithereens! Prossiga com cuidado!

 

A cultura das redes sociais em Smithereens

Chris detém Jaden de refém em um carro em Smithereens

 

A primeira crítica clara que Black Mirror faz à cultura das redes sociais em Smithereens é com relação ao comportamento do usuário.

A própria escolha do nome Smithereens tanto para a rede social quanto para o título do episódio compõe a crítica à nossa sociedade. Do inglês, “smithereens” significa pequenos fragmentos de um todo. Seria o equivalente de “pedacinhos” no português.

E esta era a proposta da rede social fictícia de Black Mirror. Similar ao Twitter, na Smithereens o usuário escrevia pequenos fragmentos que, de pedacinho em pedacinho, compunham o seu dia inteiro.

Mais que isso, o termo também remete ao vício do usuário, que de pouquinho em pouquinho cedia fragmentos do seu dia àquela rede social. Entretanto, se somados os fragmentos se transformam em significativas horas que o usuário da rede perde diariamente na plataforma.

A crítica ao nosso comportamento é construída logo no início da cena do sequestro de Jaden. Chris critica o comportamento do estagiário, que ao passar toda a corrida com os olhos vidrados em seu celular, não desconfiou das escolhas de trajetos feitas nem sequer percebeu que estava sendo sequestrado.

Além disso, ao longo de Smithereens, descobrimos o que aflige Chris. Sua noiva morreu em um acidente de carro enquanto Chris estava no volante. O motorista do outro veículo, que também morreu, levou a culpa pelo acidente por estar bêbado.

No entanto, Chris revela à Billy Bauer que ele foi o culpado pela batida, porque enquanto dirigia se distraiu no celular ao receber uma nova notificação do aplicativo Smithereens.

Dessa forma, Chris passou a culpar indiretamente a rede social pelo ocorrido. Na visão do motorista, Smithereens operaria de forma a viciar seus usuários, tornando-os dependentes em todos os instantes de verificar o número de curtidas de uma foto ou o engajamento de um post.

Por ser a personificação da rede social e quem a criou, coube a Billy Bauer o papel de servir como um canalizador de toda a ira sentida por Chris.

 

Billy Bauer ao telefone com Chris em Smithereens

 

Em entrevista ao IGN o showrunner Charlie Brooker e a produtora executiva da série Annabel Jones expuseram que Billy Bauer foi inspirado na geração de empreendedores do Silicon Valley. Na Califórnia, o Vale do Silício passou a ficar conhecido por abrigar empresas do ramo da tecnologia e da comunicação como Facebook, Instagram e Twitter.

Usualmente, essas companhias são criadas por jovens que estabelecem um estilo de comunidade tecnológica colaborativa com a intenção de melhorar o mundo e a comunicação entre as pessoas. Mas não tarda para que os interesses dos acionistas no crescimento do negócio se sobreponham às intenções de seus criadores.

É este o dilema ético enfrentado por Billy Bauer em Smithereens. Ao mesmo tempo em que é pressionado por seu acionistas a aumentar o engajamento (leia-se “vício”) dos usuários, sua consciência lhe diz que o ético seria adotar uma postura menos agressiva nos negócios.

Neste sentido, Billy está tão fora de controle quanto Chris. O que é no mínimo inusitado, já que o episódio traça um paralelo entre a figura de Billy Bauer e Deus. Além de ambos serem criadores, Billy tem uma postura serena, veste trajes brancos e possui uma fisionomia semelhante a de Jesus Cristo.

A referência ao divino se torna explícita quando Billy ironiza que uma das vantagens de ser quem ele é, é que de vez em quando ele pode brincar de Deus. Mas Smithereens nos mostra que mesmo sendo o criador, Billy se tornou impotente diante de sua criação.

Este dilema pode gerar um comportamento escapista, retratado no retiro silencioso de 10 dias feitos por Billy Bauer para desintoxicar das redes sociais. Na vida real, o CEO do Twitter Jack Dorsey é conhecido por realizar retiros espirituais, tendo passado em 2018 o seu aniversário em um retiro silencioso de 10 dias num centro de meditação em Myanmar.

A prática de fuga da realidade feita por Dorsey é criticada pelos usuários da plataforma que ele criou. Afinal, se o CEO do Twitter quer ficar dias sem usar as redes sociais ou falar com ninguém, o que isso nos diz quanto ao potencial nocivo de sua criação?

 

Billy Bauer de olhos fechados se sentindo triste em Smithereens

 

Outro assunto que Smithereens aborda envolve a discussão ética quanto à responsabilização das redes sociais pelos dados e pela privacidade de seus usuários.

No episódio, o setor de inteligência da polícia achava que tinha todas as informações possíveis sobre o sequestrador. Na verdade, ela sabia muito menos que os gerentes da Smithereens, que com suas senhas “especiais” conseguiram investigar a fundo o passado de Chris.

O poder das redes sociais é tanto que uma programadora da Smithereens é capaz de utilizar o aplicativo da rede social instalado no celular de Chris para escutar tudo o que estava acontecendo dentro de seu carro durante o sequestro.

Outra demonstração do controle que as redes sociais exercem sobre a vida das pessoas ocorre em outro momento já citado nesta crítica, quando Billy Bauer afirma poder “brincar de Deus”. Pela antiga conta de Chris na Smithereens, Billy tem acesso ao número de telefone do sequestrador e consegue entrar em contato com ele.

Essa discussão sobre a proteção de dados dos usuários de redes sociais é bastante atual. Em 15 de agosto de 2018 foi publicada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que regulamenta o comércio de dados pessoais dos usuários de internet.

De acordo com a nova lei, as empresas ficarão impedidas de coletar dados pessoais do usuário e utilizá-los para oferta de publicidade direcionada, telemarketing ou de vender as informações para terceiros sem a autorização do consumidor.

A violação do direito à privacidade é uma preocupação constante em um mundo em que anúncios direcionados nos fazem sentir vigiados o tempo inteiro.

Mas não somos apenas vítimas do processo. Nós também vigiamos.

 

A Sociedade do Espetáculo

População anda na rua olhando o celular em Smithereens

 

Na mesma entrevista ao IGN citada acima nesta resenha, o showrunner de Black Mirror Charlie Brooker explicou que em Smithereens eles tiveram a intenção de retratar que aquele era o dia mais importante das vidas de Chris e Jaiden. Mas apesar disso, o que era questão de vida ou morte para os dois, para o resto do mundo era apenas mais uma notícia, que rapidamente se perderia dentre as diversas notificações de seus celulares.

No final do episódio, somos levados a crer pela expressão de Billy Bauer que ele falhou em evitar a morte de Chris. Na sequência, vemos a notícia da tragédia circular por entre as pessoas, que checam os seus celulares e voltam à vida normal logo em seguida.

Como em outros episódios de Black Mirror, Smithereens faz uma crítica à Sociedade do Espetáculo.

O termo foi cunhado inicialmente pelo escritor francês Guy Debord, que em 1967 observou que as relações interpessoais estavam cada vez mais sendo mediadas por imagens e representações da realidade.

Após o advento da internet, as previsões de Debord somente se intensificaram. Os humanos passaram a utilizar em demasia os meios de massa, as redes sociais e a televisão para intermediar suas relações, tanto pessoais quanto com a sociedade.

Em vez de a tecnologia nos servir, nos tornamos escravos dela.

 

Chris leva um tiro no carro em Smithereens

 

Isso é visto com clareza na cena em que Chris perde o controle do carro utilizado para sequestrar Jaden. Próximo ao local estavam dois ciclistas, que foram orientados pela polícia a deixarem a área.

Mesmo correndo perigo de vida por estarem próximos a uma zona de sequestro, os dois garotos optam por não irem embora. Em vez disso, passam a fazer transmissões ao vivo do crime por meio de suas redes sociais.

O comportamento dos ciclistas retrata a sociedade do espetáculo estudada por Debord. O sofrimento de Jaden, refém em um sequestro, passa a ser visto como entretenimento tanto para os garotos que se vangloriam em seus perfis de estarem próximos a uma cena de crime, quanto para os espectadores dessa notícia.

Em um caso que viralizou ao redor do mundo em 2017, uma empregada doméstica pedia socorro antes de cair pela janela enquanto sua patroa em vez de socorrê-la filmava tudo para postar em suas redes sociais.

Para Debord, a postura passiva da sociedade moderna resultaria na degradação da humanidade, uma vez que a manipulação pelas mídias faria com que os indivíduos perdessem seu conhecimento e sua capacidade crítica.

A patroa do caso mencionado acima estava tão doutrinada pela sociedade do espetáculo que perdeu completamente o senso crítico (e a noção) de como agir em um caso extremo. Sua prioridade passou a ser televisionar a tragédia porque isso lhe concederia prestígio entre seus pares. Se ela apenas ajudasse a empregada, ninguém estaria vendo a boa cidadã que ela é.

 

Mais uma vez, Black Mirror provoca reflexões sobre a nossa relação com as redes sociais e com aquilo que nos entretém. Smithereens é uma crítica tão contundente que prevê o comportamento de seu público.

Ao terminar de forma incerta (afinal, jamais é mostrado se Chris realmente morreu), o primeiro impulso do espectador é entrar em suas redes sociais e verificar o que as outras pessoas estão falando do episódio.

E isso é muito Black Mirror!

 

Você gostou de Smithereens? Deixe sua opinião sobre o episódio nos comentários!

Curtiu o review? Você pode ler também a resenha de Striking Vipers, USS CallisterArkangelCrocodileHang the DJ e Metalhead. Ou se inscrever em nosso canal no Youtube😉

Boo Mesquita

Geek de carteirinha e cinéfila, ama assistir a filmes e séries, ir a shows, ler livros e jogar, sejam games no ps4 ou boards. Quando não está escrevendo, pode ser vista fazendo pole dance, comendo fora ou brincando com cachorrinhos. Me siga no Instagram!

6 thoughts on “Smithereens | Redes sociais e a Sociedade do Espetáculo [Explicação]

  • 23 Junho, 2019 at 4:01
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    Mais alguém notou que que Billy Bauer é o Jaron Lanier?! O trejeito, a espiritualidade, palavrões ser cofundador da rede, a aparência física e etc; tudo isso do personagem aponta para Jaron. Mas acredito que só isso não seja suficiente, confesso que até então, eu também não tinha me atentado. Mas a filosofia dele sobre o que criou e o que pedem, e que “não tem volta” e que ele deseja sair (foi o que Lanier fez) já cria suspeitas. Contudo, tudo fica carimbado com as expressões e palavras como : cassino, crack, busca de engajamento, dopamina e etc; tudo isso assinou de onde tiraram aspiração do personagem e quiçá o episódio. Tais expressões podem ser encontradas no livro: 10 Argumentos Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais, cujo autor é o Lanier.

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    • 26 Junho, 2019 at 14:28
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      Não tinha pensado nessa referência! Muito interessante e faz todo o sentido!

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  • 25 Junho, 2019 at 10:58
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    Maravilhosa a análise do episódio. Com certeza o melhor da temporada e um dos melhores da série. Uma pena que muitas pessoas não entenderam seu significado, talvez justamente porque estivessem esperando um espetáculo.

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    • 26 Junho, 2019 at 14:29
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      Obrigada, Karina! Esse também foi o meu episódio favorito dessa temporada =)

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  • 25 Junho, 2019 at 17:20
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    Muito bom Boo! A equipe que trabalhou no episódio soube demonstrar muito bem essa caraterística representativa de Billy como Deus e Jesus Cristo, aliás, você descreveu muito bem estes signos, a resenha como um todo está muito bem escrita e interessante! Aguardo ansiosamente para a próxima resenha sobre o crossover de Black Mirror com Hannah Montana hahah.

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    • 26 Junho, 2019 at 14:30
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      Muito obrigada Luiz! Sim, a resenha de Rachel, Jack and Ashley Too sai em breve! Amamos falar sobre Black Mirror! =D

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