Somente o Mar Sabe | Crowhurst, Padre do Balão e o Arquétipo do Explorador
Somente o Mar Sabe, com estreia prevista no Brasil para 26 de abril de 2018, é um drama biográfico dirigido pelo ganhador do Oscar James Marsh (A Teoria de Tudo). O longa é baseado na história real (embora quixotesca) do empresário britânico e navegador amador Donald Crowhurst, protagonizado por Colin Firth (Kingsman: O Círculo Dourado), também ganhador do Oscar de melhor ator pela atuação em O Discurso do Rei.
O ano é 1968. O jornal britânico Sunday Times lança o desafio denominado Golden Globe Race, cujo o objetivo é premiar o navegador capaz de sozinho dar a volta ao mundo em um barco, através da rota dos Grandes Cabos. O prêmio para o vencedor é de cinco mil libras.
A Golden Globe Race foi a primeira corrida de barcos lançada com a proposta de circunavegar a Terra e se tornou célebre sobretudo pelo desfecho da experiência desastrosa e trágica de Donald Crowhurst.
O longa se inicia de forma bastante promissora, de modo que tanto o público que conhece a história quanto o que nunca tinha ouvido falar (a pessoa que vos escreve), conseguem sentir a mesma ânsia pelo desenvolvimento de Somente o Mar Sabe e início da incursão marítima do protagonista.
Isto porque o diretor, com auxílio de Colin Firth, consegue conduzir muito bem nossas expectativas de aventura que diga-se de passagem, chegam ao nível de A Volta Ao Mundo Em Oitenta dias de Julio Verne até, com o perdão da anedota, nadar e nadar e morrer na praia.
Somente o Mar Sabe se utiliza muito de cores quentes para recriar a atmosfera dos anos 60 e o acolhimento familiar de Crowhurst na relação com seus filhos e sua esposa Claire, interpretada por Rachel Weisz (ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por O Jardineiro Fiel, porém mais conhecida no Brasil pela sua atuação em A Múmia).
Em contraste, o azul intenso do mar, no momento em que Crowhurst inicia sua incursão marítima, vai transformando a fotografia do filme à medida em que o personagem vai perdendo o viço e imerge em uma melancolia profunda que culmina em desespero e perda de sua saúde mental até seu trágico destino.
Esta resenha tratará dos principais tópicos envolvendo o filme.
A (des)importância da personagem Claire e sua expressividade
Claire é a matriarca da família responsável por ser a força moral catalisadora da realização das empreitadas de seu marido Crowhurst. No entanto, apesar da ideia ser promissora, Weisz claramente é muito qualificada para papel tão apagado e insosso, muito aquém de suas faculdades na atuação, de modo que sua escolha claramente tem o condão de dar visibilidade ao longa.
De fato, o único momento de expressividade da atriz no longa é no discurso que se pretende crítico acerca do trabalho da imprensa no seu afã por tragédias pessoais, e que leva a um tratamento de total insensibilidade com os familiares e envolvidos nos fatos.
No entanto, até o discurso proferido por Claire perde sua força por recair em clichês tão batidos que chegam a causar desconforto. Além disso, no que tange ao protagonismo feminino, Somente o Mar Sabe não passa no teste de Bechdel.
Ao escalar Rachel Weisz, naturalmente criamos altas expectativas acerca da construção do personagem, mas nem seu emblemático histórico de atuações consegue vencer essa falha abissal no roteiro do filme, que não soube aproveitar nada além do renome da atriz, infelizmente.
Até que ponto somente o mar sabe de características demasiado humanas?
Donald Crowhurst, de acordo com Somente o Mar Sabe, era um homem conciso porém cordial, inventivo e portador de uma sobriedade reconhecidamente associada ao estilo inglês de ser. Essas são características que nos fazem lembrar o Phileas Fogg de Julio Verne (A Volta Ao Mundo em Oitenta Dias).
No entanto, o espírito aventureiro lúdico de Fogg que mexe com nossos impulsos imaginativos quixotescos não se perfaz em Crowhurst. Enquanto naquele esse traço nos soa legítimo, neste nos parece uma espécie de resistência às suas dificuldades adultas, de modo que o risco assumido por ele consubstancia uma clara fuga da realidade. Seu desfecho não poderia ser diferente.
Crowhurst é um homem comum de sua década, com as finanças à beira do colapso, e que buscava prover para sua família através da capitalização de um dispositivo para navegação idealizado por ele. Quando se vê às voltas da possibilidade de navegar em volta do mundo e receber o prêmio que regularizaria sua situação financeira, decide construir um barco custeado por investidores. Caso ele não completasse a prova, os patrocinadores tomariam o dinheiro de volta e o navegador perderia tudo.
Nesse contexto, Crowhurst arrisca todas as suas fichas (ou melhor, seu patrimônio e de sua família) em uma empreitada leviana e atabalhoada. As consequências dessa decisão são evidentes na transformação do personagem em sua angústia.
No processo de sua preparação para iniciar a viagem, já podemos notar o quanto o personagem começa a decair em seu delírio e conduzir seu caminho em direção ao trágico. Nem mesmo o apoio incondicional de sua esposa, ao indicar que o apoiaria caso ele quisesse desistir, foi o suficiente para alterar o destino de Crowhurst.
Em todo momento, o personagem tem a opção de desistir, sendo amparado em tal escolha por pessoas significativas em sua vida. No entanto, seu orgulho em conjunto com uma espécie de pulsão autodestrutiva não permite que ele volta atrás de suas escolhas.
A intervenção de Claire, em um de seus poucos diálogos significativos, ocorre quando ela faz Crowhurst prometer que voltaria em segurança. Em um grito de socorro, Claire o lembra que ele possui uma família que o ama. Nos identificamos com esta angústia cortante quando percebemos quantas vezes conseguimos enxergar o afundamento do outro, sem poder interferir. Resta tão somente esperar pelo melhor.
Assim, a tragédia de Crowhurst e sua degeneração mental já é anunciada desde quando o personagem está em terra firme. Não somente o mar sabe uma história demasiadamente humana como o desfecho da trama já toma forma em nosso inconsciente coletivo, já que ocorre um padrão largamente repetido de escolhas autodestrutivas por parte do protagonista.
Quando o personagem adentra em mar aberto, o filme se transforma ao se tornar deveras angustiante e melancólico. Seu destino já está traçado, e assistir a degeneração de Crowhurst é como assistir um viciado em recaída do (des)conforto de nossas poltronas acolchoadas do cinema.
Aqui ele já não é mais Phileas Fogg estimulando nosso lado lúdico e aventureiro em busca de experiências que nos tiram da rotina. Agora ele é tão somente humano, nos mostrando o quanto podemos ser orgulhosos, egoístas e soberbos e consequentemente conduzir nossa própria destruição, e de quem mais estiver no caminho.
Os arquétipos de Crowhurst e o Padre do Balão
Ao conhecer a trágica história de Donald Crowhurst, um homem comum que decide encarar o mar aberto sem qualquer experiência e com um barco inacabado, associei-a naturalmente ao episódio do Padre do Balão.
Adelir Antônio de Carli, conhecido como Padre do Balão, foi um padre brasileiro que em abril de 2008 se aventurou em um voo em balões cheios de gás hélio com o objetivo de bater o recorde de permanência no ar nessa modalidade de balonismo.
Após se desviar da rota, o Padre do Balão perdeu contato com a equipe que monitorava seu voo e desapareceu. Embora alguns aleguem que Somente o Ar Sabe o que ocorreu, o evidente despreparo do Padre (que sequer aprendeu a usar o dispositivo de GPS que portava) já dava evidências de seu triste fim.
O paralelo entre Crowhurst e o Padre do Balão é evidente. Ambos perfazem arquétipos do homem em sua necessidade implacável de realizar feitos memoráveis e desafiar a natureza. O arquétipo do explorador.
Crowhurst é um homem aprisionado em sua rotina com a família que sempre foi atraído pelas mazelas da navegação. Ainda que cônscio das probabilidades, ele trabalha com a certeza quase religiosa de que sua empreitada será de sucesso. O desejo de sentir-se maior, de não recair na mediocridade é mais forte que a realidade de uma família amorosa e acolhedora. Para a satisfação de seus desejos sem nenhum sentimento de culpa, ele diz a si mesmo que o faz pela felicidade da família.
O Padre do Balão, por sua vez, vive imerso em sua batina de castidade e rotina de orações. Com uma fé cega, decide (literalmente) expandir seus horizontes, com a certeza de que não há necessidade de aprender a usar GPS. Devotar sua vida a Deus não foi o suficiente para refrear seu espírito aventureiro, de modo que lhe resta confiar seu destino ao divino. Se for da vontade d’Ele, o padre concluirá sua missão.
Crowhurst e o Padre dos Balões tiveram destinos trágicos e ninguém pode ser responsabilizado por isso além deles próprios.
O próximo tópico contém spoilers do filme, de modo que o recomendamos caso já tenha assistido.
A problemática da responsabilização
Muito embora o roteiro deixe a desejar quando se propõe a nos contar aquilo que somente o mar sabe, o esforço da tríade Marsh, Firth e Weisz é notável. Há uma história a ser contada, ela é bem dirigida e as atuações são corretas nos limites do roteiro.
Restou muito clara a tentativa do roteirista em puxar um viés político ao filme. Isto porque o discurso de Claire em seu momento de luto tenta de certa forma culpabilizar a imprensa por se alimentar de tragédias, de modo que ela seria responsável pelas decisões de Crowhust. Claire também culpa os patrocinadores de se aproveitarem da eventual fraqueza de um homem que se vê em desespero e que por isso escolhe caminhos arriscados e drásticos.
No entanto, tal tentativa é feita de forma superficial e incipiente. Assim, não vá ao cinema com expectativas de que Somente o Mar Sabe possa gerar análises e debates mais aprofundados acerca do colapso financeiro do personagem.
Logicamente, somos responsáveis pelas nossas escolhas e a posição de vítima muitas vezes é um espaço de fuga. Em uma análise sumarizada, podemos notar que todo o esforço para ingressar na empreitada e os motivos pelos quais Crowhust não desiste dela fazem parte de um grupo de escolhas de ordem particular.
No final das contas, a história de Somente o Mar Sabe trata de um homem branco, inglês, com recursos para avaliar as possibilidades existentes de reinventar-se, com uma estrutura familiar sólida e que fez um grupo de escolhas ruins que o conduziram ao seu fim.
Apesar de ser um filme bom, não chegar a ser exatamente um entretenimento. Por ser dramático e angustiante, também não se propõe a provocar grandes reflexões em sua notável superficialidade. Portanto, ele jaz no limbo dos filmes medianos.
Nota: Essa resenha tem o principal propósito de estimular o arquétipo explorador que existe em mim. Sejam gentis e me contem o que acharam do filme. 🙂