Arkangel | Vigilância, Panóptico e a chave para uma boa educação [Explicação]
Assisti a Arkangel com baixa expectativa, pois a “Internet” já falava que era um dos episódios mais fracos da nova temporada de Black Mirror. Me surpreendi. O episódio traz diversas discussões interessantes, e parte delas serão abordadas na nossa resenha a seguir.
Na trama dirigida por Jodie Foster (episódios de Orange is the New Black), Marie (Rosemarie DeWitt) perde sua filha pequena Sara (Aniya Hodge/Brenna Harding) num parquinho, reencontrando-a momentos depois. Após o susto, decide participar do teste para o lançamento de um programa chamado Arkangel.
Nele, é implantado um chip na criança que fica pareado com um tablet, entregue ao seu responsável. Por meio do aparelho, os pais conseguem saber a localização atual de seus filhos, seus níveis de estresse e dosagens de vitaminas e minerais, além de possibilitá-los a literalmente enxergarem pelos olhos das crianças, já que a tela do tablet mostra tudo o que elas vêem. O programa ainda conta com um filtro que consegue embaçar a visão do pequeno, se o responsável percebe algum conteúdo impróprio ou estressante.
Utilizado durante a infância, o Arkangel pode parecer a solução ideal para proteger o filho dos perigos do mundo. No entanto, maiores desdobramentos éticos e morais surgem quando a criança cresce e toma consciência de sua individualidade e passa a prezar por sua privacidade. Especialmente após tomarmos conhecimento de que o chip implantado não poderia ser retirado.
Tecnologia como pano de fundo
A estrutura e funcionalidade do implante que permite que os pais enxerguem o mesmo que seus filhos é similar às tecnologias já apresentadas em Black Mirror em The Entire History of You (primeira temporada) e Men Against Fire (terceira temporada). O episódio então foi criticado por não ter introduzido nenhuma inovação tecnológica, deixando de expandir o universo Black Mirror.
No entanto, apesar de haver semelhanças nas tecnologias, a abordagem de Arkangel foi diferente, trazendo as implicações morais e as consequências do excesso de controle dos pais com relação aos filhos.
A falta de originalidade não atrapalha a experiência do telespectador. Black Mirror não é uma série sobre a viabilidade de uma tecnologia existir num futuro próximo, mas sim sobre as implicações negativas (na maioria dos casos) que o avanço tecnológico desenfreado pode trazer para a sociedade.
Episódio a episódio, Black Mirror nos mostra que não temos maturidade (ou simplesmente não somos bons) o suficiente para usufruir da tecnologia de forma ética. O avanço tecnológico nos traz poder, e utilizamos dessa posição para prejudicar outros.
A série revela a capacidade do ser humano de corromper até mesmo as coisas que foram criadas para nos ajudar e nos favorecer, transformando-as em algo prejudicial às nossas vidas. O foco, portanto, é sempre na corrupção do ser humano, e não na tecnologia.
Vigilância e a Sociedade Disciplinar
Michel Foucault foi um filósofo francês que criou conceitos muito utilizados no estudo da criminologia e da psicologia, fornecendo bases epistemológicas para essas duas ciências. Assim como Freud, Foucault também tinha uma relação conturbada com seu pai, que o internou aos 22 anos após uma tentativa de suicídio, acusando seu filho de ser louco.
Um dos principais conceitos de Foucault era o de “instituições disciplinares”, que seriam instalações seguras e especializadas para lidar com grupos de indivíduos localizados nos limites da estrutura social, tais como os doentes mentais, os presos, os soldados e (pasmem) as crianças. Dessa forma, o autor compara hospitais psiquiátricos, presídios, quartéis e escolas, como entidades estruturadas em modelos semelhantes. O principal objetivo destas é o controle destes indivíduos às margens da sociedade.
Em Arkangel, o controle aplicado à pequena Sara não é feito apenas pela escola. Através do controverso aplicativo experimental, sua mãe personifica a instituição disciplinar de Foucault, ao vigiar cada passo da filha e mediar sua relação com os perigos do mundo real.
De acordo com o modelo trabalhado pelo filósofo, a vigilância seria exatamente a maneira pela qual o Estado exerceria seu controle sobre os cidadãos transgressores da ordem. No entanto, com a explosão demográfica observada a partir do século XVIII, passa a ser impossível para a entidade do Estado controlar e vigiar todos estes grupos limítrofes que necessitavam de “atenção” especial.
Foi nesse contexto que Foucault desenvolveu o conceito de sociedade disciplinar: as técnicas disciplinares deixariam de pertencer exclusivamente ao Estado e passariam a fazer parte de todas as camadas da sociedade, criando-se infinitas relações de poder: nos hospitais, presídios, escolas, e até mesmo na família (entre pais e filhos).
Desta forma, os valores do Estado para exercer o controle na população – como a ordem, a obediência e o conformismo – seriam cristalizados na mente dos indivíduos, desde os primórdios da infância no seio da família. Isto evitaria comportamentos desviantes, como a criminalidade, o uso de drogas e o comportamento sexual irresponsável, que poderia disseminar doenças e acelerar o crescimento populacional.
Esses comportamentos desviantes são exatamente os adotados por Sara na narrativa, assim que sua mãe deixa de lado o programa Arkangel e o guarda no fundo do armário. O Arkangel, portanto, é manifestação máxima do estado de vigilância e controle do Estado estendido à instituição familiar.
Arkangel e o Panóptipo
Para Foucault, o maior símbolo do poder de vigília e controle do Estado era a figura do panóptico. Este foi um projeto arquitetônico idealizado por Jeremy Bentham e que tinha a finalidade de garantir que todos os presos ou doentes mentais pudessem ser vistos a partir de uma única torre central.
A função do panóptico é de induzir no detento um estado consciente e permanente de vigilância, o que assegura o controle do Estado sobre ele sem maiores esforços.
A grande sacada do panóptico é que a sensação da vigilância passa a produzir efeitos permanentes, mesmo quando sua ação é descontinuada, uma vez que o detento ao olhar para a torre nunca saberá se efetivamente está sendo vigiado ou não, mas tem a certeza de que esta sempre poderá ser uma possibilidade.
A esta altura você já deve ter percebido que em Black Mirror o projeto Arkangel representa o panóptico. Com ele, Marie tem total controle sobre os passos e a visão de Sara, que passa então a se comportar sempre da maneira desejada por medo da possibilidade de estar sendo vigiada.
Além disso, a própria Sara representa um panóptico ambulante para seus amigos, e isso fica claro na cena em que Sara encontra seus colegas de classe e Trick (Nicky Torchia/Owen Teague) pede para ela ir embora por achá-la uma dedo-duro.
Infelizmente Trick está certo, pois apesar de esta não ser a intenção de Sara, ela acaba vigiando as ações de seus colegas, que são reproduzidas no tablet de Marie. Como consequência, ninguém quer brincar ou sequer ficar perto de Sara, por medo de terem suas ações e conversas reveladas para os adultos. Sara se torna a verdadeira manifestação da vigilância e controle do Estado.
Sara então fica sem amigos, e numa atitude desesperada, frustrada por não conseguir experimentar todas as sensações do mundo como uma criança normal, começa a se mutilar.
Ao perceber que o Arkangel está prejudicando sua filha, Marie decide então aposentar o programa para que Sara pudesse ter uma infância normal.
Vigilância sem Punição
Diferente do propósito pensado por Foucault sobre o panóptipo, Marie usa o Arkangel apenas para vigiar Sara. Não há um viés punitivo na utilização do Arkangel feita por Marie. Ela nunca pretendeu punir sua filha, ou sequer estabelecer limites a ela. Sua única intenção era proteger Sara de tudo e todos, e para isso exercia o controle sobre suas ações.
Quando descobriu pelo Arkangel que Sara havia cheirado cocaína, Marie em vez de repreendê-la procurou Trick e o ameaçou com fotos para que nunca mais se aproximasse de sua filha. Neste momento, Sara volta a representar um panóptico para Trick, que então se afasta.
O auge de superproteção conferida à Sara ocorre quando Marie descobre pelo Arkangel que sua filha está grávida. Marie prefere não punir ou repreender sua filha, apenas tentar “anular” os seus erros, ao misturar o contraceptivo no café da manhã de Sara (não entraremos na polêmica sobre o tipo de pílula contraceptiva usada por Marie).
Esta ação acaba sendo o exemplo máximo da conduta superprotetora da mãe, que vigia e tenta criar uma vida perfeita para a filha, mas nunca realmente a prepara para o mundo. Ao anular a possibilidade de gravidez de Sara, que seria a consequência de seu comportamento de risco, Marie mais uma vez evita confrontar e punir sua filha pelos seus atos, tentando simplesmente protegê-la a qualquer custo.
A chave para uma boa educação
O próprio Netflix nos convidou a refletir sobre as atitudes de Marie em seu Twitter, quando promovia a 4ª temporada de Black Mirror:
The key to good parenting. pic.twitter.com/J97Ij0u9jc
— Black Mirror (@blackmirror) 24 de novembro de 2017
Seria o controle realmente a chave para ser uma boa mãe ou pai?
Marie quis controlar Sara para protegê-la do mundo mas se esqueceu que com isso a castrava, impedindo-a de viver as experiências que lhe trariam maturidade e os traumas que moldariam sua personalidade. Como consequência, uma vez livre do sistema, Sara cresceu querendo viver intensamente, e até mesmo de forma inconsequente. Foi uma forma de compensação pelos anos de poder exercido por sua mãe.
Após o sexo com Trick, este questiona Sara sobre seu linguajar parecido com o das atrizes pornô, informando-a que ela não precisava falar ou agir que nem elas, se não quisesse. Na verdade, Sara não sabe sua real vontade ou como agir. As ações que toma podem ser legitimamente suas ou apenas resultado da compensação pelos anos de controle.
Marie só queria proteger Sara, mas em vez disso acabou criando uma pessoa sem noção de como agir sobre seus impulsos e vontades. Ela teve diversas oportunidades de conversar com Sara sobre as descobertas que fez pelo Arkangel, como o sexo sem proteção e a experiência com as drogas. Mas culpar os outros pelas ações de Sara lhe pareceu mais fácil do que conversar com ela sobre a origem de seus impulsos e estabelecer limites.
Essa é uma questão muito atual: os pais cada vez mais terceirizam a educação de seus filhos, não se comunicam com eles e fazem todas as suas vontades, seja por medo da rejeição ou para valorizar o pouco tempo que têm juntos. Com isso esquecem que “punir” faz parte de educar.
Obviamente não se está falando de punição com castigos físicos, o que seria ilegal, mas de se estabelecer limites. A criança ou o adolescente que cresce sem ouvir “não” tem grandes chances de se tornar um adulto frustrado. A rejeição ou negação de vontades faz parte da vida adulta.
Arkangel nos mostra a situação extrema de uma educação 100% protetiva e sem limites: Sara acaba agredindo gravemente sua mãe, fugindo de casa logo em seguida. No entanto, no episódio acabamos empatizando com Sara. Afinal, pudemos acompanhar seu desenvolvimento e vemos que suas atitudes são um produto de sua criação superprotetora.
No final das contas, Marie falhou em proteger sua filha. Arkangel termina então num ciclo perfeito: assim como no parquinho ao início do episódio, Sara se perde novamente. Mas desta vez para sempre.
A chave para uma boa educação? Certamente não é com o Arkangel.
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Adorei as críticas dos episódios de BM! A profundidade das análises e a visão ampliada, abrangendo aspectos filosóficos, psicológicos, físicos, etc. Todas as críticas foram muito bem realizadas e, claro, apesar de discordar em alguns pontos (poucos), isso jamais reduz a qualidade nem me dá o direito de discordar, pois cada um tem seu ponto de vista.
Apenas acho que posso contribuir um pouco com a análise deste episódio, acrescentando um ponto muito importante que observei no mesmo.
A questão de que o sistema estava configurado para impedi-la de assistir a coisas que lhe causariam desconforto, para mim, merece uma atenção maior. Essa privação traz consequências muito mais complexas do que se imagina! Situações de estresse que passamos na vida (inclusive desde crianças) contribuem para nosso desenvolvimento, não apenas no aspecto imediatista, já que o sistema nervoso simpático, modulado por substâncias adrenérgicas não está presente em nosso organismo à toa. Ele serve para preparar a pessoa, habilitando-a a fugir ou lutar, dependendo da situação. Mas, em uma análise a longo prazo, a vivência de experiências desagradáveis também contribui para a formação da personalidade. O ser humano é um ser complexo, resultado de traumas, afetos e experiências múltiplas, cada uma carregada de sentimentos diversos e todos necessários para a formação do ser. Claro que, em situações extremas, traumas graves podem levar a transtornos e patologias psíquicas, que devem ser tratados e, sempre que possível, prevenidos. No entanto, desde crianças, devemos perceber que o mundo não é um “mar de rosas” e que há o mal, há violência, há problemas demais neste mundo. Ao privar uma criança de perceber essas coisas, ela cresce sem o conhecimento das mesmas (o que lhe impede de se preparar para os obstáculos da vida), e até mesmo sem desenvolver empatia, capacidade de se compadecer, vontade de ajudar o próximo, ou até mesmo, hesitação em causar qualquer sofrimento alheio. Foi exatamente o que aconteceu com Sarah. Ela não se tornou agressiva simplesmente pela forma como a mãe a superprotegia, sem corrigi-la (com certeza isso também contribuiu, concordo plenamente), mas também pelas causas já explanadas acima. Dá uma ótima discussão esse ponto. Outro questionamento que vem à mente é: “Será que o ‘mal’ teria um papel fundamental na formação do ser humano dito ‘bom’?”. Obrigada pela atenção.
Faz total sentido, privar crianças de experiências negativa é privá-las do processo de aprendizagem.
Concordo que isso pode ter contribuído para seu comportamento violento.
Muito obrigado pelo comentário e pela contribuição!
Parabéns pela sua análise!!! Texto fluido, bem escrito e com profundidade. Bello lavoro!!!!!!!
Que analise !!👏🏻👏🏻
Excelente texto! Achei o epsodio de extrema qualidade mas fiquei um pouco frustrado com o final.. Você não acha que o suícidio de Sara seria algo mais viável pro fim não?