Isso é muito Black Mirror: 5 tecnologias da série que já existem na vida real
O hype é forte com a proximidade da estreia da nova temporada de Black Mirror, anunciada pelo Netflix para o dia 29 de dezembro.
A série consegue apresentar, com maestria, os conflitos e dramas da psiquê humana ao lidar com os avanços da tecnologia. De forma irônica, parece que nossa mente (e sociedade) não está preparada para lidar com todas as possibilidades e desdobramentos éticos de nossas próprias criações.
Apesar da maior parte dos episódios de Black Mirror se situarem em contextos futuristas, muitas das tecnologias apresentadas na série de fato já existem no mundo atual. E isso é realmente assustador.
Selecionamos 5 tecnologias mostradas em Black Mirror que já são realidade:
1 – Ranking Social – “Nosedive” (3ª temporada)
Achei o seu “bom dia” debochado, vou te dar uma má avaliação
Em “Nosedive” (Queda Livre) somos apresentados a um mundo em que as relações sociais são intermediadas por um aplicativo em que as pessoas podem dar notas umas as outras. Neste mundo, qualquer olhar torto ou indelicadeza pode gerar um nota negativa, que influenciaria a avaliação geral de uma pessoa e limitaria suas oportunidades de futuras interações sociais.
Neste episódio, Black Mirror nos mostra um mundo bastante cruel e dominado pela falsidade. Essa é a grande proeza de Black Mirror: conseguir jogar na nossa cara uma crítica direta ao nosso comportamento, mas disfarçada de ficção em um futuro ainda distante de nós. O episódio critica o modo que usamos redes sociais, onde ostentamos uma vida perfeita para melhorar nossa imagem perante nosso iguais e ganhar likes, a moeda de aprovação do mundo atual.
“Nosedive”, no entanto, eleva este comportamento à décima potência, a medida que a tecnologia mostrada no episódio integra o “mundo real” com as redes sociais, o que obriga os personagens a serem sempre simpáticos e viverem uma vida aparentemente perfeita. Isto faz com que a personagem principal, interpretada por Bryce Dallas Howard (Jurassic World), desenvolva uma insegurança exagerada, buscando a constante aprovação das pessoas com que convive.
O comportamento de avaliação já está presente no mundo atual em diversas plataformas de serviços, como Uber, Trip Advisor, entre outras. No entanto, o jogo começa a virar quando a avaliação é usada para os cidadãos comuns.
Sistema de Crédito Social Chinês, ilustrado por Kevin Hong
A China, por exemplo, já começou experimentos com o chamado “Sistema de Crédito Social”, uma nota individual afetada por critérios como histórico de crédito, cumprimento de prazos, características pessoais, comportamentos e relacionamentos interpessoais. Esta avaliação seria o principal critério para decidir se alguém poderia pegar dinheiro emprestado, matricular seus filhos nas melhores escolas, conseguir os melhores quartos em hotéis, ou mesas nos restaurantes mais disputados.
Este modelo já está funcionando e já conseguiu milhares de usuários que se inscreveram espontaneamente, em busca dos incentivos oferecidos pelo governo chinês, como check-ins mais rápidos em hotéis, possibilidades de empréstimos e obtenção mais rápida de vistos de viagem.
Apesar de por enquanto contar com a adesão voluntária dos cidadãos, o “Sistema de Crédito Social” será implementado de forma obrigatória para todos os moradores do país até 2020.
2 – Conversar com pessoas mortas – “Be Right Back” (2ª temporada)
Você usaria um app para conversar com alguém falecido?
“Be Right Back” abre a segunda temporada com um soco no estômago. É um dos episódios mais profundos de toda a série, ao falar da perda de um grande amor e de um futuro em que este sofrimento poderia ser tolerado com o uso da tecnologia para conversar a pessoa falecida, ainda que através de uma simulação.
A trama se passa ao redor de Martha e Ash, interpretados por Hayley Atwell (Capitão América: Guerra Civil) e Domhnall Glesson (Ex Machina). O jovem casal se muda para uma vida tranquila em uma casa no campo, mas tudo muda quando uma tragédia acontece e Ash morre em um acidente de trânsito. Martha sofre com a perda e acaba descobrindo que está grávida, o que faz com que recorra a um serviço online, ainda em fase beta, que permite conversar com entes queridos falecidos.
A tecnologia usa todo o histórico de postagens em redes sociais e chats online da pessoa falecida para entender seu padrão de escrita e interação, sendo capaz de criar uma inteligência artificial que simula conversas. No episódio, o desenvolvimento da tecnologia avança muito rápido, e a empresa começa a oferecer upgrades além do chat, como conversa por voz e um corpo sintético onde o programa é carregado e a simulação atinge seu grau máximo de sofisticação.
O episódio é bastante ousado na temática abordada, mas não tão descolado da realidade. Em 2015, Eugenia Kuyda, co-fundadora da empresa Luka, criou um aplicativo para conversar com seu amigo falecido, Roman Mazurenko.
A empresa Luka acredita que os chatbots memoriais seriam o negócio do futuro
Indo mais além, temos a fundação Terasem Movement, que se dedica ao desenvolvimento da “Consciência Transferida”, ou seja a criação de um novo ser biológico ou nanotecnológico a partir de dados históricos detalhados de alguém falecido, chegando como resultado a uma individualidade comparável a um ser humano nascido de forma normal.
Um dos primeiros experimentos desta fundação foi a criação do robô Bina48, uma réplica de Bina Aspen, esposa de Martine Rothblatt, uma das idealizadoras da Terasem. A simulação foi criada a partir de centenas de horas de arquivos de conversação com Bina Aspen, que são constantemente atualizados. Afinal a Bina original ainda está viva, como você pode ver no vídeo abaixo, onde ela interage com a sua simulação robótica:
Os avanços da ciência no terreno da inteligência artificial estão extremamente rápidos, o que mostra que a tecnologia mostrada na série não está tão distante da nossa realidade, felizmente ou infelizmente.
3 – Lentes de contato “inteligentes” – vários episódios (1ª, 2ª e 3ª temporadas)
Imagina poder registrar tudo que você vive para rever depois? ( ͡° ͜ʖ ͡°)
Esta tecnologia está presente em todas as temporadas de Black Mirror até o momento, ainda que as funcionalidades variem de episódio para episódio. Um dos que mais explora esta tecnologia é “The Entire History of You”, em que as lentes gravam tudo que seus usuários estão vendo para que suas memórias possam ser acessadas posteriormente, através de um dispositivo implantado no cérebro.
Esta é uma das tecnologias trazidas na série que traz à tona mais discussões polêmicas, principalmente pela situação apresentada no episódio, em que um casal tem uma DR e usa as gravações para jogar na cara do outro os fatos exatamente como eles aconteceram.
Outro uso inusitado das lentes de contato inteligentes é a transmissão ao vivo de experiências, como no episódio “White Christmas”, em que o personagem principal, interpretado por Jon Hamm (Mad Men) assessora à distância um jovem que precisa de conselhos sobre como agir enquanto tenta uma aproximação com uma mulher em uma festa.
O desenvolvimento do controverso Google Glass foi um primeiro passo para transformar a visão de Black Mirror em realidade, mas apesar da alta expectativa do público para o lançamento, feito em 2013, as vendas do produto não decolaram como o planejado e o projeto foi congelado. A Google declarou em julho de 2017 que o projeto será retomado para o desenvolvimento de uma nova versão do dispositivo, voltado para o uso específico em fábricas.
A Samsung deu um passo além, registrando a patente para a produção de lentes de contato com microcâmeras integradas e conexão wi-fi, sendo rapidamente seguida pela Google (novamente!), que registrou a patente de um micro-chip injetável em nossos olhos.
Lentes de contato inteligentes da Samsung prometem fazer o que o Google Glass não foi capaz
A tecnologia da Samsung seria controlável a partir de nossos smartphones, gerando uma verdadeira experiência de realidade aumentada, mas sem ter de usar um óculos brega como o Google Glass ou passar por um procedimento bizarro como injetar um micro-chip no olho.
4 – Abelhas-robôs – “Hated in the Nation” (3ª temporada)
Abelinhas fofinhas robóticas para salvar o planeta. O que poderia dar errado?
No episódio “Hated in the Nation”, Black Mirror traz uma situação hipotética em que as abelhas estariam sumindo do mundo. Neste contexto, uma startup do Reino Unido desenvolve pequenas abelhas robóticas para solucionar o problema, afinal as abelhas são essenciais para polinizar flores.
O que muitas pessoas não sabem é que abelhas não são só seres fofinhos produtores de mel, que gostam de atazanar quando você come algo açucarado. Elas são os verdadeiros órgãos sexuais das plantas. Boa parte delas precisa das abelhas para espalhar seu pólen. Existem estimativas de que pelo menos dois terços de toda a nossa alimentação vem direta ou indiretamente de vegetais cuja polinização é feita por abelhas.
Apesar de “Hated in the Nation” ter transformado essa situação catastrófica em uma trama policial sobre as consequências do mau uso da desta tecnologia, é assustador pensar que que as abelhas realmente estão reduzindo em número ano após ano.
A causa desse desaparecimento das abelhas é o mesmo explicado no episódio: os insetos abandonam suas colônias e acabam morrendo. E ninguém consegue explicar exatamente o motivo.
Preocupados com os impactos do desaparecimento das abelhas no ecossistema mundial, o que seria uma verdadeira catástrofe, cientistas de Havard já estão desenvolvendo sua própria versão das abelhas-robôs. As RoboBees, que possuem 3cm de comprimento e ainda possuem problemas para voar de forma eficiente. Os protótipos desenvolvidos até o momento ainda gastam muito energia e não são eficientes.
RoboBees: o futuro da polinização
E não vai ser fácil mesmo, afinal, durante muito tempo pesquisas mostravam que de acordo com a lei da aerodinâmica, as abelhas não deveriam conseguir voar, pelo corpo pesado e asas demasiadamente pequenas. Ainda assim, elas não só voam como são capazes de executar manobras ágeis, evitando obstáculos e pousando em flores em movimento por conta do vento. É por esse motivo que suas proezas aéreas são tão difíceis de reproduzir em laboratório.
Mas em Black Mirror, as pequenas abelhinhas-robôs não só tem a habilidade de polinização, como também possuem câmeras e microfones embutidos, recursos que acabam sendo hackeados e usados para invadir a privacidade de outros indivíduos.
Os exércitos britânico e norueguês já estão usando algo parecido, a PD-100 Black Hornet, também chamada de “o menor drone do mundo”. A Black Hornet pesa 18 gramas (o equivalente a três folhas de papel) e conta com câmera de visão noturna, mas só consegue ficar no ar por 25 minutos seguidos.
Black Hornet: o menor drone do mundo
Incrível, né? Nem tanto. Se tem algo que Black Mirror nos ensina é que não é porque alguma nova tecnologia é capaz de ser inventada, que nós devemos necessariamente inventá-la.
5 – Upload de consciência – “San Junipero” (3ª temporada)
Viver para sempre em um servidor? Onde eu assino?
“San Junipero” não é só meu episódio preferido de Black Mirror, mas uma de minhas obras favoritas de todos os tempos. A trama consegue, disfarçada de uma história de amor agridoce, passar pelos temas mais profundos da nossa existência enquanto seres humanos.
O episódio traz muito forte a questão da fé em algo maior (ou a sua perda) versus a busca hedonista por prazer, além de abordar diversos temas da filosofia clássica, entre eles a famosa Alegoria da Caverna, de Platão.
Neste episódio, Black Mirror joga na nossa cara uma das perguntas mais intrínsecas da existência humana: o que é preferível, viver feliz em uma mentira – uma simulação da realidade -, ou encarar a verdade, ainda que dolorida?
Não é difícil perceber que vivemos simulacros da realidade o tempo todo. Redes sociais, games imersivos, divagações em nossa cabeça… a própria cultura atua com este papel, de fornecer um escapismo das desilusões do mundo real.
O estágio máximo desse escapismo seria a proposta de “San Junipero”, também defendida por Ross, em Friends: fazer um upload de suas memórias e pensamentos em um sistema e viver eternamente como uma máquina.
A possibilidade de no futuro se fazer um upload da mente para um computador é bastante defendido nas obras de Ray Kurzweil, invetor e futurista. Kurzweil defende que até 2045 todos os seres humanos já terão atingido o estágio de imortalidade, tendo feito o upload de suas mentes para a “nuvem”. É o que o autor chama de “singularidade”, um estágio de superinteligência em que todas as mentes estariam conectadas a um computador. Este também seria o estágio evolutivo final da humanidade, segundo o movimento Trans-Humanista.
Parece ficção demais, certo? Nem tanto.
O bilionário russo Dmitry Itskov fez a seguinte afirmação: “Garantirei que ainda dentro dos próximos 30 anos, nós seremos capazes de viver para sempre”. O bilionário tem gastado uma boa parte de sua riqueza para viabilizar pesquisas para desenvolver esta tecnologia de “upload de mentes”.
No entanto, Itskov é criticado por diversos neurocientistas, que defendem que sua proposta é totalmente descolada da realidade. Em algum momento o cérebro foi interpretado através de um modelo computacional, ou seja, tinha-se a hipótese de que seu funcionamento seria análogo ao de um computador. Hoje em dia, porém, esta abordagem já é vista como defasada.
Isso não parece ser impeditivo para que diversos especialistas continuem tentando construir um cérebro artificial. Entre essas iniciativas, temos a BRAIN, o Blue Brain Project e o Human Brain Project, que tentam mapear as conexões neurais para desenvolvê-las em uma versão artificial. No entanto, ainda que as conexões possam ser reconstruídas, persiste o problema de como gerar o fenômeno da consciência, que ainda está além da compreensão humana.
Com o início da quarta temporada, a única certeza é que seremos apresentados a novas tecnologias com forte potencial de desgraçar nossas cabeças.
Este é o papel de Black Mirror: nos alertar para os perigos e armadilhas das novas tecnologias, nos ajudando a desenvolver uma visão crítica sobre a nossa sociedade e sobre o que é, afinal, ser humano.
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