You | Crítica provocativa ou romantização da violência?

Obras feitas sob o ponto de vista do antagonista estão longe de ser novidade, vide o sucesso de Dexter ou Hannibal. Neste sentido, não houve uma grande inovação na temática com You, que estreou no catálogo do Netflix em dezembro de 2018. Ou houve?

Baseada no livro homônimo de Caroline Kepnes, You é um thriller que acompanha a vida de Joe Goldberg (Penn Badgley) a partir do momento em que ele conhece Guinevere Beck (Elizabeth Lail) e se “apaixona” pela jovem.

A utilização das aspas na designação dos sentimentos de Joe pode ser melhor explicada no trecho da música do grupo Molejo, utilizada por Penn Badgley para anunciar a renovação da série para uma 2ª temporada: “não era amor. Era cilada.“.

 

 

Na verdade, Joe é um sociopata e nutre uma obsessão por Beck. Ele se torna um stalker da jovem e a manipula. Ela, por sua vez, não faz ideia que está em um relacionamento abusivo.

O sucesso de You incomodou algumas pessoas, que acreditavam que a série romantizava o comportamento doentio de Joe. Afinal, You é uma crítica contundente ou uma romantização da violência?

 

Atenção, pois os próximos tópicos contêm spoilers da 1ª temporada de You. Prossiga com cuidado!

 

A romantização da sociopatia em You

Beck e Joe em You

Uma das maiores críticas à série se deve ao fato de que You acabou por romantizar o comportamento sociopata de Joe. Ele é um rapaz culto, agradável, aparentemente normal. É ele quem aponta para Beck que suas amizades eram manipuladoras, e tenta protegê-la do que ele considera mal ou intimidador.

Para algumas pessoas, Joe é retratado como um indivíduo bem-intencionado que salvou Beck de um relacionamento abusivo que ela tinha com Peach Salinger (Shay Mitchell), sua melhor amiga. A morte de Peach? Legítima defesa.

Foi também por excesso de amor e zelo que Joe assassinou Benji (Lou Taylor Pucci). Ele era uma má influência para Beck, e feria os sentimentos da garota. O erro de Joe era amar Beck demais, ultrapassando todos os limites éticos e morais por ela.

Essa é uma interpretação prejudicial da conduta de Joe, já que “desvilaniza” o rapaz, tornando-o um herói de moral deturpada.

O histórico de abusos que o próprio Joe sofreu também seria favorável ao personagem, na medida em que isso poderia ser visto como uma justificativa para suas ações. O rapaz fugiu de casa e foi acolhido pelo Sr. Mooney (Mark Blum), um severo dono de uma livraria.

A princípio, Mooney havia feito uma boa ação. Entretanto, acreditando que ensinava a seu protegido disciplina e como lidar com as durezas da vida, o dono da livraria abusava mental e fisicamente de Joe. Ele o torturava, mantendo o adolescente trancado por dias no cofre localizado no subsolo da livraria. Joe cresceu então sem referência de uma forma saudável de amor.

Mas o principal argumento para a romantização de Joe consiste na relação quase parental que ele mantinha com Paco (Luca Padovan), filho de sua vizinha. You nos passa a impressão de que Joe é capaz de nutrir sentimentos por outras pessoas, já que está sempre pronto para proteger Paco dos abusos que sofria de Ron (Daniel Cosgrove), namorado de sua mãe. Essa atitude de Joe para com Paco reforça a ideia de que o rapaz toma atitudes ruins, mas no fundo teria um bom coração.

Não seria perigoso uma obra contribuir para a romantização da sociopatia? E ao fazê-lo, não estaria a série compactuando com atitudes tão claramente perturbadoras e erradas como homicídios decorrentes de um comportamento controlador, possessivo e “stalkeador”?

A resposta positiva ao comportamento de Joe por parte do público da série parece indicar que sim.

“É estranho que eu ‘shippe’Joe&Beck? Mesmo sabendo que Joe é um stalker”
Resposta da Netflix: “Sim”

O que não falta em diversos fóruns e redes sociais são pessoas apoiando o comportamento de Joe e vilanizando suas vítimas, em especial Peach e Beck. “Beck é uma pessoa TERRÍVEL.“, “Meu Deus Peach, que p*ta“, diziam alguns usuários no subreddit da série. “Ainda estou na metade e até agora nem tenho certeza se eu gosto da Beck. Por outro lado eu AMO Joe. Isso é totalmente errado?“, questionava outra usuária.

Parafraseando a resposta dada pelo Netflix, sim. Isso é totalmente errado. Mas o número de shipps em favor do casal Joe e Beck e a quantidade de apoiadoras de Joe deveriam nos dizer alguma coisa.

 

A crítica ao comportamento sociopata de Joe feita em You

Joe observa Beck em segredo em You

 

Torcer para o vilão não é novidade. Dexter tinha um forte fandom, e ele era um serial killer. No entanto, graças à educação que recebeu, ele se tornou um serial killer de outros serial killers. Dexter só matava aqueles que realmente mereciam morrer. Tinha um código moral, agia em prol da sociedade, era praticamente um herói. Já Joe matava inocentes.

Mas será que as vítimas do rapaz eram tão inocentes assim?

O primeiro fator que deve ser observado é que a diferença entre personagens como Dexter e Joe não está no comportamento deles, mas na maneira como absorvemos suas ações. Ambos são assassinos. Ambos são stalkers. A estrutura dos seriados é inclusive muito parecida e a narração por meio de monólogos dos protagonistas nos faz observar os acontecimentos sob os seus pontos de vista. Isso é essencial para o público criar empatia com situações inicialmente repulsivas.

Portanto, a principal diferença entre Joe e Dexter é a permissividade em nossa moral, que nos permite flexibilizar alguns comportamentos por critérios subjetivos do que entendemos como mais ou menos errado. Matar alguém aos olhos da lei sempre será uma atitude condenável – não há exceções. Mas matar um pedófilo soa mais tolerável do que assassinar uma estudante universitária.

No fim das contas, tendemos a tolerar mais atitudes que nos causam maior empatia.

E é neste fato que reside a popularidade de Joe. Stalkear se tornou um comportamento amplamente tolerado em nossa sociedade. Está presente em filmes e séries que enaltecem seus protagonistas abusadores e reforçam a romantização do relacionamento abusivo. Se controlar as amizades da outra pessoa é um ato de zelo, e possessividade é uma demonstração de amor, então errado é aquele que não dá suas senhas pessoais a seu parceiro(a). De vítima, Beck rapidamente se torna a culpada pelos excessos de Joe.

Quem nunca stalkeou que atire a primeira pedra.

 

Beck triste em You

 

Entretanto, o brilhantismo de You reside em seu desfecho. Muitos espectadores poderiam até o episódio final se identificar com Joe. Ele era um stalker, mas isso é algo perfeitamente normal. Ele matou Benji, mas ele era um assassino, a escória da sociedade. Por um impulso, machucou Peach, mas apenas matou a garota por legítima defesa. Por fim, livrou Paco dos abusos de Ron.

Mas e o assassinato de Beck? O que Beck fez para merecer morrer?

Obviamente, a resposta é nada. O homicídio de Beck é essencial para a construção de You como uma contundente crítica ao comportamento sociopata e abusivo de seu protagonista. Joe comete uma atitude tão injustificável que convida os simpatizantes do rapaz a reavaliar as semelhanças que possuem com o antagonista. Em uma reflexão autocrítica, podemos identificar comportamentos que não são saudáveis e eliminá-los – afinal, veja onde a obsessão levou Joe.

Por uma obviedade, a série é provocativa. Os flashbacks para o maus tratos que Joe sofreu em sua infância e adolescência não são uma justificativa de seu comportamento, mas trazem uma explicação para seus traumas e sua incapacidade de amar.

Não, Joe não ama Beck. Isso fica por deveras claro quando ele perdoa a traição de Beck, mas mata a garota para salvar sua própria pele e impedir que ela o denunciasse para a polícia. Desde o início, Joe nutria por Beck uma obsessão e um sentimento de possessividade. Quando teve a certeza de que Beck jamais poderia amá-lo, e que ela iria prejudicá-lo, Joe não hesitou em matá-la.

 

Beck presa e desesperada em You

 

A única pessoa que Joe ama é ele próprio, e sua relação com Paco é uma extensão desse amor. Joe apenas cuida de Paco porque enxerga a si mesmo no menino. Paco o relembra de quando ele próprio era criança e possuía uma família abusiva. Quando oferece abrigo a Paco, é porque sente empatia por ter passado pelas mesmas situações quando criança.

 

You mostrou-se uma série provocativa, que busca gerar uma reflexão sobre as atitudes consideradas como normais e que podem ter desdobramentos catastróficos. O trunfo de You foi que, ao colocar Joe como narrador, a série convida o espectador a empatizar com o jovem para depois mostrar ao público como essa empatia não deveria existir – e como ela é perigosa.

 

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Boo Mesquita

Geek de carteirinha e cinéfila, ama assistir a filmes e séries, ir a shows, ler livros e jogar, sejam games no ps4 ou boards. Quando não está escrevendo, pode ser vista fazendo pole dance, comendo fora ou brincando com cachorrinhos. Me siga no Instagram!

2 thoughts on “You | Crítica provocativa ou romantização da violência?

  • 27 Janeiro, 2019 at 20:03
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    O meu maior problema com “You” é com certeza o fato de eu ter lido o livro antes de ver a série. Porque a série fica o tempo todo tentando enfiar goela abaixo a ideia de que o Joe é apenas um jovem injustiçado e que tudo o que ele fez tem um motivo. No livro fica explícito o quão doentio, abusivo e cruel ele é. Ele mesmo admite em um trecho que não é uma boa pessoa, além de ficar sempre culpando as pessoas por suas ações. Coisa que eu não vi acontecer na série. Lá, aparentemente, todo mundo era vilão e ele o mocinho. Foi muito incômodo ver isso, toda a crítica da história morreu ali.

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  • 2 Dezembro, 2020 at 11:24
    Permalink

    Primeiramente teriamos que entender o que significa SOCIOPATA……….
    Distúrbio mental caracterizado pelo desprezo por outras pessoas.
    Pessoas com transtorno de personalidade antissocial (TPAS) podem começar a demonstrar sintomas na infância, mas não é possível diagnosticar a condição até a adolescência ou idade adulta.
    Quem tem transtorno de personalidade antissocial costuma mentir, infringir leis, agir impulsivamente e desconsiderar sua própria segurança ou a segurança dos outros.

    Reply

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