Lady Bird | O investimento narcisístico de pais em seus filhos

Lady Bird é um filme que pode dividir opiniões. Para alguns, uma bela história sobre o processo de amadurecimento pelo qual todos passamos. Para outros, uma drama clichê sobre uma adolescente mimada e mal-agradecida. Independentemente das opiniões conflitantes, a obra escrita e dirigida por Greta Gerwig agradou a crítica e foi indicada a 5 Oscars, dentre eles Melhor Filme e Melhor Atriz para Saoirse Ronan, que interpretou Cristine “Lady Bird” McPherson.

O filme se passa em 2002 e é centrado na protagonista Cristine, uma estudante de 17 anos prestes a terminar o colegial em uma escola católica na cidade de Sacramento. De forma sutil e poética, Lady Bird passa pelos conflitos diversos na vida de uma adolescente que busca sua identidade e lugar no mundo. Muitos consideraram a narrativa como uma espécie de prequel de Frances Ha, filme de Noah Baumbach estrelado pela própria Greta Gerwig, que faz o papel de Frances Halladay, uma jovem adulta de 27 anos que divide o apartamento com sua amiga Sophie (Mickey Sumner). Em ambos os filmes, um dos grandes méritos é apresentar a narrativa de um ponto de vista totalmente feminino, o que infelizmente não costuma ser comum em Hollywood.

Um dos pontos de maior densidade do filme, que será o foco desta resenha, é a relação extremamente realística de Lady Bird com sua mãe, Marion (Laurie Metcalf). Tanto nos detalhes, quanto nas conversas mais profundas, a relação entre as duas é retratada de forma impecável, sendo com certeza um dos principais aspectos do filme para gerar identificação com público. O período da adolescência é exatamente a época de maior conflito de filhos e pais, pois no processo de construção de uma identidade própria é preciso negar aspectos da identidade imposta pelos pais. E isto fica especialmente claro nas relações entre o mesmo sexo, como do pai com o filho homem e da mãe com a filha mulher. Mas, por quê?

Para entender melhor a origem desses conflitos, vamos recorrer a Freud e sua teoria sobre o investimento narcisístico, algo bastante comum nas relações entre pais e filhos. É importante ressaltar que apesar de Lady Bird ser o ponto de partida para a análise, inúmeros outros filmes se utilizam desse arquétipo para a construção de suas narrativas, sendo um tema bastante recorrente. Temos Eu, Tonya, Aos Treze, Valente e Céu de Outubro, para citar alguns.

 

O Narcisismo

O mito de Narciso

 

Comecemos então pela lenda de Narciso, um dos contos mais conhecidos da mitologia grega. Segundo uma das versões do mito, que aparece no livro III das Metamorfoses de Ovídio, Narciso era um jovem extremamente belo e cativante. Antes de nascer, seus pais haveriam consultado o oráculo local, Tirésias, para saber qual seria o destino de seu filho. A revelação foi de que ele teria uma longa e próspera vida. Desde que nunca visse o reflexo de seu próprio rosto.

No entanto, como você poderia esperar, foi exatamente o que aconteceu. Com sua beleza, Narciso despertou a paixão de homens e mulheres. E por sua postura orgulhosa e arrogante, a deusa Némesis o condenou a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo, o que aconteceu quando Narciso olhou para sua imagem em uma lagoa.

Narciso ficou encantado por sua própria beleza e deitou-se a beira da lagoa, para se admirar melhor. Totalmente absorto, esqueceu-se de se alimentar e acabou definhando até a morte. Após sua morte, o jovem de beleza inigualável foi transformado em um bela flor, que até hoje é chamada de Narciso.

A partir deste conto, a cultura popular passou a utilizar o adjetivo “narcisista” para se referir, de forma pejorativa, a pessoas investidas demais em si mesmo, com um amor próprio exagerado. Ou a pessoas vaidosas demais, que adoram se admirar diante de um espelho.

 

 

No entanto, na psicanálise de Freud, o narcisismo seria um aspecto fundamental para a construção da psiquê de um indivíduo. Uma quantidade moderada de amor por si próprio seria necessária para sustentação da autoestima e de um ego saudável.

Para o autor, o narcisismo seria fundamental principalmente na fase da infância, quando a criança acredita que o mundo gira ao seu redor. Para um desenvolvimento saudável, no entanto, é preciso que esse narcisismo se dissipe, pois a tendência natural é percebermos que não somos o centro do universo.

Esse processo faz parte da evolução e sobrevivência do ser humano. O narcisismo na infância é a percepção da importância da criança e seu papel central na vida dos pais. Isto ajuda a construir sua autoestima, mas superar isso é essencial, já que viver acreditando que somos a parte mais importante da vida de outras pessoas é um fardo pesado demais a se carregar, e pode causar uma série de questões psicológicas.

Algumas crianças, no entanto, não conseguem superar de forma saudável o narcisismo dessa fase, o que desenvolve uma série de frustrações. Sua crença de que são os seres mais importantes do universo é confrontada com a dura realidade, e a frustração que advém deste conflito pode fazer com que passem suas vidas almejando um modelo inatingível de perfeição.

Mas o que isso tem a ver com a relação entre mãe e filha em Lady Bird? Talvez você já esteja conseguindo juntar os pontos. A relação entre Cristine e sua mãe é um bom exemplo de como as relações entre pais e filhos podem sofrer com uma má resolução de investimentos narcisísticos.

 

O investimento narcisístico de pais em seus filhos

 

É importante considerar que todos os pais já foram um dia crianças, que tiveram de superar o narcisismo e entender que eles, por sua vez, não seriam os seres mais importantes do mundo. É difícil, mas a maioria das pessoas consegue superar esta fase e entender que representam apenas um pequeno papel no grande esquema do universo.

No entanto, a partir do momento que se tornam pais, estas pessoas acabam tendo seu narcisismo “reavivado”, desenvolvendo um novo investimento narcisístico, desta vez totalmente concentrado na figura de seus filhos. E isso é essencial para a sobrevivência da raça humana. É preciso que pais considerem seus filhos o centro do universo e forneçam cuidados com o máximo de zelo para assegurar sua sobrevivência enquanto ainda são seres frágeis e indefesos.

Mas o ser humano não é um animal simples, e este investimento narcisístico acaba tomando proporções mais complexas, ao passo que os pais atribuem um verdadeiro ideal de perfeição a seus filhos. E qualquer ideal de perfeição tende a gerar frustração. Muitos pais veem em seus filhos a chance de corrigirem todos os seus erros e fazê-los trilhar um caminho de maior sucesso que os trilhados por si próprios.

Voltando a Lady Bird, notamos na relação de ressentimento de Marion com sua filha uma espécie de frustração da mãe com o caminho trilhado por Cristine. A mãe de Lady Bird demonstra impaciência ao vê-la tomando decisões com as quais não concorda, frustrando a visão de futuro perfeito imaginado por ela.

 

 

Enquanto durante a infância as crianças são dóceis e aceitam as ordens dos pais, é comum que este tipo de frustração ocorra exatamente na adolescência, fase em que o jovem irá, através de sua natureza rebelde, negar as ordens dos pais e decidir seu próprio caminho. Ocorre portanto a quebra desta idealização por parte dos pais, gerando muitas vezes um forte ressentimento, quando estes não conseguem ser abertos para entender que seus filhos precisam de independência e opiniões próprias.

Em Lady Bird fica bastante evidente esta dissonância entre o futuro imaginado por Marion para sua filha, e a vida real vivida por Cristine. Enquanto isso, em outro concorrente ao Oscar de Melhor Filme em 2018, temos um exemplo oposto, onde o investimento narcisístico de um pai é bem resolvido.

Em Me Chame Pelo Seu Nome, conseguimos notar que a relação de Mr. Perlman (Michael Stuhlbarg) com seu filho Elio (Timothée Chalamet) é muito mais saudável. Apesar de existir sim um investimento narcisístico – afinal o pai se orgulha da cultura de seu filho, de suas habilidades musicais e do fato de provocar interesse nas outras jovens -, o pai de Elio consegue ter uma boa relação de diálogo com ele, deixando-o livre para tomar suas próprias escolhas.

 

 

Ao final, no diálogo entre os dois (reconhecidamente uma das melhores cenas do filme), temos o exemplo máximo da boa resolução desta questão. Mr. Perlman empatiza com Elio e o aconselha, mas também mostra a dura realidade da vida e o explica a consequência de suas escolhas.

Diante disso, enquanto Elio se sente acolhido, Cristine vive com a frustração de nunca ser “boa o bastante” para sua mãe. Este sentimento de Cristine é recorrente em jovens e fez com que muitas pessoas se identificassem com a história contada no longa.

A habilidade em gerar este fator de identificação com público, nas sutilezas de uma complicada relação entre mãe e filha, foi sem dúvidas um dos grandes acertos do longa. Que Greta Gerwing continue a nos trazer histórias simples, mas poéticas como Lady Bird.

 

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Marcos Malagris

Publicitário, professor de marketing digital e Psicólogo, gasta seu escasso tempo livre navegando na Interwebz, consumindo nerdices e contemplando a efemeridade da existência. Me siga no Twitter ou no Facebook!

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