A Maldição da Residência Hill | Os verdadeiros fantasmas da série [explicação]

É uma tarefa difícil fazer uma boa série de terror. O gênero parece ser mais bem sucedido nos filmes, considerando a dificuldade de manter a tensão e o medo no telespectador por diversas horas a fio, se comparado ao par de horas de duração de um longa metragem. Quanto maior é o tempo da obra, mais difícil é inovar nos sustos, e em consequência maior é a possibilidade das situações se tornarem repetitivas e entediarem o público. O Netflix vem tentando abordar a temática lançando diversos conteúdos originais contemplando o gênero ao longo dos anos, como Scream, Hemlock Grove, Tábula Rasa e Requiem. Entretanto, nenhuma fez muito alarde entre seu público. Tudo isso mudou com A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House, em inglês), sua mais nova série original dedicada ao terror.

Sempre é bom tomar cuidado com o hype e o marketing massivo ao redor de novas produções. Mas quando o próprio mestre do terror Stephen King elogia a série, sabemos que há um conteúdo que vale ser assistido de perto.

“A Maldição da Residência Hill, revisada e remodelad por Mike Flanagan. Normalmente eu não ligo muito para esse tipo de revisionismo, mas esse é ótimo. Perto de um trabalho genial, na verdade. Eu acho que Shirley Jackson aprovaria, mas quem sabe ao certo.”

A Maldição da Residência Hill é inspirada no livro homônimo de Shirley Jackson. A trama da série é bem batida, inclusive sendo o próprio nome da residência o mesmo utilizado em outras obras do gênero. Dirigido por Mike Flanagan (Jogo Perigoso), conta a história de uma família composta pela arquiteta Olivia (Carla Gugino) e o engenheiro Hugh Crain (Henry Thomas/Timothy Hutton), que se mudam por um curto período de dois meses para uma nova casa com seus filhos Steven (Paxton Singleton/Michiel Huisman), Shirley (Lulu Wilson/Elizabeth Reaser), Theodora (Mckenna Grace/Kate Siegel), Luke (Julian Hilliard/Oliver Jackson-Cohen) e Nell (Violet McGraw/Victoria Pedretti). A ideia era reformarem a casa e vendê-la por um preço mais alto, e com o dinheiro adquirirem a “casa dos sonhos” (“dream house“, em inglês). No entanto, não tardam a descobrir que a casa é mal-assombrada, e esconde mistérios que culminam em uma tragédia familiar.

Para a série, Flanagan recorreu a atores com quem já havia trabalhado antes. O cineasta já havia dirigido Gugino e Thomas em Jogo Perigoso (2017), Wilson e Reaser, intérpretes de Shirley quando criança e adulta, respectivamente, em Ouija: Origem do Mal (2016), e Siegel em Hush: A Morte Ouve (2016), tendo a estrela escrito também o roteiro do longa ao lado de Flanagan. Boa parte do elenco, portanto, já era familiarizado com o gênero, tendo a atriz mirim Lulu Wilson trabalhado inclusive no sucesso Annabelle 2: A Criação do Mal (2017).

Apesar de ter bons jumpscares e poder causar alguma dificuldade de dormir se assistidos à noite pelos mais sensíveis ao gênero, parece um certo marketing exacerbado as notícias de que pessoas estão passando mal com crises de ansiedade e vômito ao assistirem A Maldição da Residência Hill. Portanto, tome cuidado para que essas notícias não aumentem suas expectativas e estraguem uma boa série.

Se a trama já é conhecida, o grande diferencial da obra está em sua execução e na real mensagem que quer passar utilizando a metáfora do paranormal.

Atenção, pois os próximos tópicos contêm spoilers de A Maldição da Residência Hill.

Produção Primordial

Diferente da maioria das séries de terror disponíveis no serviço de streaming, A Maldição da Residência Hill é bem sucedida em manter o terror e os sustos durante toda a temporada. Os jumpscares começam no 1º episódio, e vão se intensificando ao longo da temporada. Como a cada episódio as situações e percalços enfrentados pelos personagens são diferentes, a história e os sustos não ficam repetitivos.

Parte do êxito de A Maldição da Residência Hill na manutenção dos sustos e da atmosfera hostil ao longo de toda a temporada reside na maneira como a qual a série foi contada. Cada episódio foca especificamente na história de um membro da família, começando pelos filhos em ordem decrescente, e depois, os pais. Assim, o 1 º episódio foca nos demônios do filho mais velho Steven, o 2º em Shirley, o 3º em Theo, o 4º em Luke, apenas alguns instantes mais velho que sua gêmea, e o 5º na caçula Nell, fechando o primeiro arco da série. Como cada personagem é assombrado por um fantasma específico, não há somente um demônio na série, aumentando a sensação de imprevisibilidade dos sustos.

A Maldição da Residência Hill também utiliza um recurso narrativo já visto em séries como The Affair. Como as histórias dos irmãos e de todos os membros da família se cruzam, vemos o mesmo evento sob diferentes perspectivas e pontos de vista. Esse recurso mantém a nossa atenção sempre em alerta, já que para entender o todo, devemos unir aos poucos as peças do quebra-cabeça representadas pelas versões dos fatos dos diferentes membros da família Crain.

Assim como toda boa obra de terror, A Maldição da Residência Hill abusa das sombras e tons escuros para criar a atmosfera aterrorizante da série. Alguns tons fortes de vermelho alertam para o perigo iminente. A própria origem de toda a assombração não poderia ter uma coloração diferente: o Quarto Vermelho. Ao longo da obra, nos é esclarecido que este cômodo contém a origem de todo o mal, já que, como o fantasma de Nell nos explica, ele é o coração, ou melhor, o estômago da casa, que se alimenta de seus residentes.

Outro fator que assemelha A Maldição da Residência Hill às demais obras do gênero é a presença da “hora do diabo” (“witching hour” ou “devil’s hour”, em inglês), momento na madrugada entre 3:00 e 4:00 a.m. em que a atividade paranormal é acentuada. Na série, os irmãos acordam ao mesmo tempo, quando o relógio marca 3:03 da manhã. A única exceção é o irmão mais velho Steven, que acorda 12:03, mas devemos nos lembrar que ele está no fuso horário da Costa Oeste, enquanto os demais irmãos habitam a Costa Leste. Assim sendo, na verdade Steven continuou acordando na mesma hora que seus familiares.

Sem querer estragar a experiência do telespectador, destaca-se o 6º episódio da série, intitulado Duas Tempestades, que foi executado de modo diferente do restante da obra. Pela sua excelência, poderia ser uma aula de como fazer um bom filme de terror. Planos longos e câmeras giratórias, fazem com que o episódio se assemelhe ao conceito de um excelente filme, em que a câmera acompanha um personagem, e após, passa a observar o outro, sem efetuar cortes.

Por seu primor, o Netflix divulgou um vídeo por trás das câmeras, durante a execução do episódio, com depoimentos do diretor e do elenco:

Nele, Flanagan explica que para este único episódio foram construídos dois galpões, um para a mansão Hill, e o outro para a funerária, e um corredor que os conectava, para permitir a filmagem com os planos longos. Foram cinco semanas de produção, e mais duas semanas de ensaio com os atores e a equipe secundária que marcava a coreografia do elenco e das câmeras. Tudo isso para apenas cinco dias de filmagens, um para cada plano da sequência. O episódio inteiro é constituído portanto de quatro planos longos, sem cortes, e mais os minutos finais, gravados nos moldes tradicionais.

Os verdadeiros fantasmas em A Maldição da Residência Hill

As grandes obras de terror da atualidade não são somente os filmes que ocasionam bons jumpscares, mas aquelas que nos fazem refletir e servem de ponte para abordagem de outros assuntos, mais palpáveis que o paranormal. Na esteira de Hereditário, A Maldição da Residência Hill também pode servir de analogia para retratar os verdadeiros fantasmas que assombravam os irmãos Crain.

Steven

Fantasma que o assombra: negação e ceticismo

É certo que a morte da mãe deixou marcas diferentes em cada um dos irmãos. Para Steven, o primogênito, e em quem seu pai sempre atribuiu a maior responsabilidade para cuidar dos outros, a principal marca deixada foi a negação e o ceticismo.

Steven percebeu que para conseguir cuidar dos irmãos da melhor maneira possível, ele tinha que ser forte. E para ele, isso significava negar tudo o que aconteceu na mansão Hill. Este também foi o principal mecanismo de defesa que permitia que ele próprio não duvidasse de sua sanidade mental, já que estava seguro que todos da sua família sofriam algum tipo de distúrbio.

O que Steven deixou escapar é que seu excesso de ceticismo prejudicava seus laços familiares, pois lhe concedia um ar de superioridade. Ao desconfiar de todas as coisas que aconteciam ao seu redor e que afetavam seus irmãos, Steven descreditava os sentimentos deles, os fazia se sentirem insanos, enquanto acreditava ser ele próprio a única voz sã e racional da família.

Ou seja, sem querer, Steven pode ter contribuído para os problemas de seus irmãos, em uma tentativa de salvá-los das doenças mentais que acometiam sua mãe.

Shirley

Fantasma que a assombra: controle e infidelidade

Quando Steven se mostrou frio e cético demais, Shirley assumiu a responsabilidade do primogênito de cuidar dos seus irmãos. Se estivéssemos em Friends, Shirley seria a Monica. Só que a máscara de cuidadora esconde também um fantasma do qual Shirley não consegue se livrar: sua paixão pelo controle.

Pode ser que sua obsessão pelo controle tenha se desencadeado justamente quando ela teve que encarar o luto pela primeira vez. No episódio dedicado a ela, visitamos o seu passado e descobrimos que ela cuidou de uma ninhada de gatinhos recém-nascidos. Mesmo dando o seu melhor para cuidar dos filhotes, um a um, todos morreram. A sensação de total impotência diante da morte pode ter ocasionado em Shirley uma necessidade de buscar por situações em que ela pudesse exercer o controle absoluto.

Ela que fala em nome de seus irmãos e diz a Steven que ninguém aceitará o dinheiro advindo dos direitos autorais de seu livro. Ela quem proíbe Luke de ir no casamento de Nell, mesmo sabendo que a presença dele significaria tudo para sua irmã. Em uma tentativa de proteger os outros, seu vício por controle acaba fazendo com que Shirley escolha por aqueles que ama, muitas vezes não os informando de todas as opções possíveis.

Quando Shirley trai o marido, ela enterra essa questão e finge que sua infidelidade jamais existiu. Ao não contar o ocorrido, ela toma uma decisão por ele, que continua com ela sem saber de seu ato. Até mesmo quando Shirley finalmente se liberta deste fantasma e expõe a verdade ao seu marido, ela o faz de modo autoritário.

Theodora

Fantasma que a assombra: solidão

Quando Theodora era pequena, sua mãe lhe explicou que ela tinha um dom. A menina era sensitiva, de modo que, pelo simples toque, podia experimentar as sensações vivenciadas pelas outras pessoas. Theo interpretou seu dom como uma maldição, e como resultado se fechou para todos.

Devido à sua dádiva, o fantasma de Theo se tornou a solidão. Isso ocasionou na mulher problemas de intimidade e dificuldades de se relacionar. Ela é amável, quer o melhor para aqueles que ama, mas teme se despir de sua armadura e acabar cheia de mágoas.

Luke

Fantasma que o assombra: insegurança e vício

Desde criança, a única pessoa que sempre acreditou em Luke foi Nell, e, ocasionalmente, Theo. Nenhum dos adultos nunca levou as teorias do menino a sério. Luke foi tão desacreditado que para a surpresa de todos os espectadores descobrimos ao fim da série que sua amiga imaginária Abigail era, na verdade, uma criança real, sendo filha do casal Dudley.

Ao crescer sempre duvidando de sua capacidade e de sua sanidade mental, Luke se tornou um rapaz muito inseguro. Não tardou para que sua insegurança, somada ao luto, fizesse o rapaz ceder ao vício em heroína. O seu arco da história é um dos mais tristes e lembra um pouco o do personagem Jesse Pinkman, da série Beaking Bad. Assim como Jesse, Luke é um rapaz bondoso, doce, altruísta e bem intencionado, mas não consegue se livrar dos seus demônios e acaba sempre fazendo as escolhas erradas, sentido-se cada vez mais como um fracasso.

Nell

Fantasma que a assombra: depressão e distúrbios mentais

Na analogia da série, se considerarmos que o foco da narrativa não se encontra no paranormal, os fantasmas que assombram Nell são semelhantes aos de sua mãe Olivia: a depressão e distúrbios mentais. Desde criança, a pequena Nell sempre via uma figura aterrorizante – a senhora do pescoço torcido. Essas visões a acompanharam em sua vida adulta, até que conheceu Arthur, seu futuro marido, e teve um momento de paz.

Entretanto, em uma de suas crises de paralisia do sono, Nell presencia a morte de seu marido por um suposto AVC, no instante em que ela vê novamente a senhora do pescoço torcido. Em sua cabeça, esta não é uma coincidência.

O luto pelo marido trouxe à tona novamente o estado de letargia em que Nell se encontrava antes de conhecer Arthur. Ela retorna à terapia, mas sofre o mesmo problema de Luke: nem seu terapeuta acredita nela.

E é ele quem lhe dá a dica que culmina em sua ruína: a confrontação de seus medos.

Há também outra analogia presente em A Maldição da Residência Hill, na qual é possível relacionar os sentimentos dos irmãos Crain aos cinco estágios do luto.

Os Cinco Estágios do Luto em A Maldição da Residência Hill

A comparação de cada um dos irmãos Crain com os cinco estágios do luto utilizando o modelo criado pela psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross foi inicialmente apontada por um usuário do Tumblr, e melhor explicada em um post do Buzzfeed. Em seus estudos, Kübler-Ross identificou que o luto passava por cinco fases, na seguinte ordem: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação.

Vamos agora à representação de cada uma delas.

Curiosamente, o fantasma de Steven também é o mesmo correspondente ao estágio do luto em que ele se encontra. Steven está em negação: se nega a crer em assombrações, ou qualquer coisa relacionada ao sobrenatural, possuindo explicações racionais para as tragédias que acometem sua família, como os transtornos mentais passados de geração a geração.

Já o estágio do luto que melhor representa Shirley é a raiva. Isso é visto com clareza no momento em que ela ainda criança encara a morte pela primeira vez ao se despedir dos filhotes de gato. Shirley culpa e guarda mágoas de sua mãe Liv por não tê-la deixado manter o último gatinho sobrevivente, sem saber que na verdade Olivia o sacrificou por estar muito doente e por querer poupar sua filha de um sofrimento maior.

Mesmo após crescida, Shirl vive constantemente com raiva, como quando briga com Steven pelo livro que ele escreveu, ou quando discute com Theo por ter achado que a irmã tentou ficar com seu marido.

Por sua vez, Theodora representa a fase do luto da negociação, justamente por viver em conflito entre manter a distância e ser uma pessoa melhor. Ela se formou em psicologia infantil para utilizar seu dom para ajudar crianças que passaram por traumas assim como ela. Em contrapartida, maltrata seu interesse amoroso e volta atrás logo em seguida. E ela também é diplomática e procura ficar bem com todos, o que pode ser visto quando aceita o dinheiro de Steven sem que Shirley soubesse, além de não contar para a irmã que seu próprio marido também aceitou o dinheiro do advindo das vendas do livro do primogênito.

Considerando-se a insegurança de Luke e a crença de que ele é um fracassado, seu estágio no luto é a depressão. Esta é a fase mais difícil e visceral do luto, e é por isso que Luke externaliza mais seu sofrimento com medidas autodestrutivas. Também contribui para sua condição o fato de ter morrido sua irmã gêmea Nell, com quem mantinha uma poderosa conexão.

Por fim, ao sugerir que Nell retorne à mansão Hill, seu psicólogo contribui para que ela chegue ao último estágio do luto: a aceitação. Nell sabe que adentrar naquela casa será seu fim. Não fica claro se ela entra em contato com seus entes queridos para se despedir ou em uma última tentativa de ser persuadida por eles a desistir de seu plano.

Mas no final, Nell aceita a situação e abraça seu triste destino. O desespero toma conta dela quando descobre tarde demais o paradoxo em que se encontrou: ao morrer, se transformou na senhora do pescoço torcido, a assombração origem de todos os seus problemas.

Considerando-se que a série possui um final claro, ainda é incerto o retorno de A Maldição da Residência Hill para uma segunda temporada. Entretanto, a confirmação de novas temporadas de Big Little Lies e The Sinner demonstram que existe a possibilidade de conversão de minisséries em séries de mais de uma temporada a depender da performance das obras. Pelo sucesso absoluto da série de Flanagan, é seguro dizer que caso seus criadores assim o queiram, ela possui grandes chances de renovação para um novo ano.

A Maldição da Residência Hill preenche todos os requisitos para se tornar um clássico instantâneo do terror. E assim como Hereditário, a série nos relembra que a inevitabilidade do sofrimento na vida pode ser um fantasma muito mais real e assustador que os espíritos que talvez habitem o nosso mundo.

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