Striking Vipers | Traição, masculinidade tóxica e vício em pornografia [Explicação]
Striking Vipers, o 1º episódio da 5ª temporada de Black Mirror, traz uma discussão inovadora a uma tecnologia já apresentada em outros episódios da antologia como USS Callister e The Entire History of You.
Dirigido por Owen Harris (também responsável pela direção de San Junipero) e roteirizado pelo próprio showrunner de Black Mirror Charlie Brooker, Striking Vipers ficou famoso em solo brasileiro por ter sido filmado em São Paulo.
O episódio conta a história de Danny (Anthony Mackie) e Theo (Nicole Beharie), um casal em crise. No entanto, o reencontro de Danny com seu antigo colega de apartamento Karl (Yahya Abdul-Mateen II) desencadeia uma série de eventos que podem mudar para sempre a vida do casal.
A um primeiro olhar, Striking Vipers é apenas mais um dos episódios de Black Mirror que possui um final feliz, como San Junipero ou Hang the DJ. Entretanto, a mensagem deixada pelo episódio é mais complexa que um “felizes para sempre”, provocando discussões sobre diversos conceitos e temas complexos que abordaremos a seguir nesta crítica.
Atenção! Os próximos tópicos desta análise contêm spoilers sobre Striking Vipers! Prossiga com cuidado!
Masculinidade Tóxica em Striking Vipers
Após a introdução de Striking Vipers, os amigos Danny e Karl se reencontram no aniversário de churrasco de Danny anos depois de dividirem um apartamento. Neste momento, vemos o desconforto de Danny em rever Karl, relutando em abraçar o amigo. Por que uma simples demonstração de carinho é tão difícil para Danny?
Mas Danny não está sozinho nessa. Garotos aprendem desde pequenos que não devem demonstrar afeto aos seus amigos porque isso representaria traços de homossexualidade. Ao contrário, são incentivados a brincarem com os amigos de brigar, porque isso sim que é “coisa de homem”.
A mesma lógica é aplicada à verbalização dos sentimentos. Meninos são ensinados que “homens não choram”, e que falar sobre como estão se sentindo é algo que diminui sua masculinidade. Como resultado, os garotos crescem sozinhos, isolados e retraídos.
A solidão pode acompanhar até mesmo um homem que tenha muitos amigos porque homens são desencorajados a conversarem entre si sobre seus medos e outras questões importantes da vida. Curiosamente, há uma pesquisa que demonstra o poder dos jogos online em abrir, por meio das máscaras adotadas no jogo, diálogos mais profundos e sinceros entre amigos.
Essa noção de masculinidade tóxica faz com que os jovens cresçam se moldando conforme o que a sociedade espera de um “homem de verdade”. Isso gera uma ansiedade muito grande, além da necessidade de provar sua masculinidade o tempo todo.
Este tema é abordado com sensibilidade e tom crítico em The Mask You Live In, documentário disponível no Netflix que traz uma nova perspectiva sobre o machismo. A obra demonstra que apesar de serem tratados como culpados de reproduzirem o machismo, os homens também são vítimas desse processo.
Outro projeto que também dialoga com a construção de uma masculinidade sadia é o MEMOH. A proposta do projeto é promover a equidade de gênero sob o ponto de vista dos homens, fazendo-os refletir sobre seu papel na sociedade.
Estimular a troca de experiências entre os homens é um importante fator para reduzir a masculinidade tóxica e frear comportamentos machistas. Ao descobrir que outras pessoas possuem os mesmos problemas que nós, nos sentimos menos sozinhos e mais compreendidos.
Apesar de ser um marido amoroso, as consequências do machismo estão presentes na vida de Danny o tempo todo. No prólogo do episódio vemos que apesar de morarem juntos, as interações de Karl e Danny se resumem ao jogo de vídeo game Striking Vipers.
Onze anos depois, o que os une novamente é o jogo. Apesar do longo período afastados, não há uma vontade recíproca de saber sobre a vida do outro. Karl presenteia Danny com a nova versão de realidade virtual de Striking Vipers, e imediatamente o jogo se torna a única interação entre os dois.
E então os amigos passam a manter relações sexuais virtuais – Danny como Lance, e Karl como Roxette. Logicamente, Danny e Karl jamais mantêm uma conversa saudável sobre o significado da atração de um pelo avatar do outro. Após a primeira experiência, Danny se limita a colocar a culpa na bebida, mas logo em seguida eles transam novamente.
Assim como na maior parte dos jogos, Roxette é hiperssexualizada e possui padrões de beleza que não correspondem aos da maioria das mulheres. Como consequência, não tarda para que Danny perca o interesse em Theo e passe a ficar excitado apenas com Roxette. Karl também sofre as consequências do sexo virtual e aparece em uma cena apresentando problemas de ereção em uma relação real com outra mulher.
Somente quando Theo dá um ultimato em Danny durante o aniversário de casamento dos dois que ele decide colocar um ponto final na relação com o Karl. E é nesse momento que ele fala ao amigo que a relação virtual deles seria injustiça com Theo.
Karl então responde: “Mas não é traição. Não é real. É tipo pornô ou algo assim.”
O vício em pornografia
Striking Vipers compara o sexo virtual dos dois com a pornografia. Não à toa, podemos também traçar um paralelo entre o vício de Danny e Karl no sexo virtual ao vício em pornografia.
Apesar de também afetar um número crescente em mulheres, o vício em pornografia ainda é maior em homens. Existem diversos estudos que estabelecem uma conexão entre o vício em pornografia e a disfunção erétil entre os jovens.
Assim como Danny e Karl, adolescentes e jovens adultos saudáveis não têm razões fisiológicas para desenvolverem problemas de ereção, mas por questões psicológicas a disfunção pode se tornar real. E o consumo excessivo de pornografia é uma das causas que pode desencadear o distúrbio.
Primeiramente, o vício em pornografia dessensibiliza o usuário. Da mesma forma que uma droga, o viciado precisa de doses cada vez maiores de pornografia para ficar excitado, até que o conteúdo “normal” passa a não mais surtir o efeito desejado. Assim, o usuário precisa consumir um conteúdo cada vez mais exagerado para alcançar a ereção.
O problema é que parte deste conteúdo engloba mulheres irreais fazendo sexo em posição excessivamente submissa, ou que as denigre.
Não há regras no sexo desde que haja o consentimento de todos os envolvidos, mas alguns conteúdos pornográficos podem causar a impressão de que toda mulher gosta de estilos sexuais menos convencionais para os padrões da sociedade.
E quando o homem percebe que sua parceira não se parece com as atrizes pornô a que ele assiste, e que ele não consegue reproduzir com ela as cenas que o excitam, essa combinação pode fazer ele perder o interesse no sexo.
Nesta esteira, em estudo sobre o tema o Dr. Joseh Alukal, diretor de saúde reprodutiva de Nova York, concluiu que “quando a maior parte de seu tempo é utilizado assistindo e se masturbando para a pornografia, é provável que a pessoa se torne menos interessada nos encontros sexuais do mundo real“.
Além disso, a pornografia é prejudicial porque faz o homem acreditar que ele deveria performar da mesma forma que ele assiste nos filmes. A ansiedade gerada pela preocupação na performance também pode levar a problemas de ereção.
E em um ciclo vicioso, essa preocupação é também aquilo que os prende na pornografia. Se no sexo a dois o homem sente a pressão pela performance, na masturbação esse receio não existe.
Em Striking Vipers, Danny e Karl não parecem sofrer com suas parceiras pressão pela performance, mas certamente demonstram terem perdido o interesse no sexo do mundo real.
Danny fica tão confuso ao perder o interesse sexual em Theo que começa a questionar sua sexualidade. Em um momento de desespero e racionalidade, Danny quebra a barreira do machismo e sugere um encontro no mundo real para testar a atração que sente por Karl/Roxette.
Mas Karl e Danny não sentem nada um pelo outro fora do jogo. São seus avatares que eles desejam.
Se é apenas dentro do jogo, é traição?
Striking Vipers também levanta a discussão sobre o conceito de traição. O fato de Danny manter relações sexuais com Karl dentro do jogo significava que ele estava traindo Theo? Se é apenas no mundo virtual, é traição?
Essa pergunta é respondida no final do episódio.
Após se viciar no sexo experimentado com Karl, Danny perde o interesse em Theo e se afasta dela. Confuso, ele adota uma postura evasiva quando sua esposa decide discutir a relação. Mas após ser preso ao brigar na rua com Karl, Danny atinge o seu limite e opta por contar toda a verdade à Theo.
Então, no fim do episódio, ao som de “One Minute More”, assistimos a celebração de 40 anos de Danny. Ao final da festa, Theo entrega o presente do marido. Dentro da caixa, o mecanismo utilizado para acessar a realidade virtual.
Enquanto Earl Grant entoa “Eu somente te amarei até só existir noite“, vemos Danny se entregar aos prazeres do sexo virtual com Karl enquanto Theo sai sozinha, estando livre para fazer sexo casual com um estranho de sua escolha.
Assim, Striking Vipers parece equiparar o sexo praticado por Danny no mundo virtual com o praticado por Theo no mundo real. Afinal, se ambos não considerassem as ações de Danny como traição, Theo jamais teria o “passe livre” de fazer sexo com estranhos no mundo real.
Mas o episódio busca passar uma mensagem mais crítica que apenas a discussão sobre a validade do sexo virtual. No final, Striking Vipers é sobre um casal que para manter a unidade teve que passar a olhar para os desejos e necessidades individuais de cada membro que o compõe.
Como Theo expõe a Danny durante seu jantar de aniversário de casamento, a relação dos dois é um compromisso. Mas mais do que se comprometer à felicidade alheia, estar em uma relação envolve o compromisso com a própria felicidade.
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Amei a análise, enquanto lia repassei o episódio na mente e fui questionando cada momento do episódio.A análise de vocês me ajudou bastante a entender o episódio mais um pouco.
Muito obrigada, Matheus! Ficamos felizes que tenha gostado da análise! Não se esqueça de assinar nossa newsletter para ficar por dentro quando houver novos posts!
Gostei bastante da conclusão, até então, estava achando uma análise superficial, pois o episódio despertou muito mais questões filosóficas mais profundas em mim. Claro, o nome do post é Traição, Masculinidade Tóxica e vício em pornografia, o texto cumpriu a proposta, porém, acredito que em certo ponto fugiu da discussão em relação ao episódio, para ser um texto estritamente sobre estes temas junta de convicções pessoais, evidenciado pelos termos usados em se tratar com objetividade tais questões. De toda forma, estava esperando uma discussão mais imersiva quando postassem algo sobre o episódio, não foi nada além do que a internet no geral está fazendo, algo que não tira a validade da análise.
Luiz, ficamos felizes com o seu comentário porque é a participação dos leitores que enriquece cada vez mais as discussões e o próprio site. Estamos curiosos para saber a maneira que o episódio falou contigo! =)
Claro! Com todo o prazer. Se levarmos em conta que a tecnologia abordada é um protótipo do que nos foi apresentado em USS Callister e San Junipero, a imersão – ou pelo menos o desejo dela – na temática da realidade aumentada foi o que me chamou a atenção. Isso me despertou questões como: a complexidade que é estar em um mundo virtual, quais os seus limites “físicos” do software? Possibilidades de interação; (algo que o episódio abordou com a questão sexual) sujeição á influencia dos programadores. Também reflexões como: estar em um corpo diferente do seu; – não necessariamente do sexo oposto – a possibilidade de permanecer no mundo virtual; migração de consciência (semelhante ao que aconteceu em Westworld). Li uma crítica do Omelete, onde dizia que a equipe teve medo de fazer esse tipo imersão nesse episódio, porém, não concordo plenamente. Pode ser que a proposta simplesmente tenha sido outra, pois, de certa forma, são questões que já foram contempladas nos episódios citados.
Adorei suas colocações, Luiz! É muito bacana como os comentários de vocês só enriquecem a discussão. Realmente, parando para pensar a questão da migração de consciência e existência apenas em um plano virtual foi melhor aprofundada em San Junipero..
Adorei o texto, Boo!!! Cheio de informações! Mas super tinha interpretado que eles eram gays e que aquele “não senti nada” no final era caô 😱
Hehehe esta também é uma opção possível! O episódio não esclareceu por completo a sexualidade deles =)
Não existe pornografia ‘vício’, dizem os pesquisadores
Jornalistas e psicólogos são rápidos em descrever alguém como sendo um “viciado” pornográfico, mas não há uma pesquisa científica forte que mostre que tais vícios realmente existem. Assim diz um psicólogo clínico na prática em um grande programa de saúde comportamental.
https://www.sciencedaily.com/releases/2014/02/140212153252.htm
Gostei muito da análise! Uma camada do episódio que não percebi foi que o fato deles fazerem sexo no jogo era, em parte, uma válvula de escape do afeto/atração que não demonstravam livremente fora do jogo. “Danny e Karl jamais mantêm uma conversa saudável sobre o significado da atração de um pelo avatar do outro”. Perfeito! A masculinidade tóxica os impedia de falar sobre este afeto, e só conseguiam demonstra-lo através de seus avatares – e mesmo o afeto “virtual” tinha limites, pois Danny foi reativo quando Karl disse “eu te amo” dentro do jogo, ou seja, proibido verbalizar afeto, proibido levar a relação para além da dimensão sexual! Estavam seguindo o roteiro da cultura machista. Esta camada do episódio caiu num ponto cego pra mim, um ponto cego do machismo, e esta resenha me fez enxergar isto! 🙂
Outra camada do episódio que acho fantástica e que o texto não aborda diretamente é a influência da tecnologia nos limites da sexualidade. Se em alguns episódios vemos a tecnologia deixando tênues os limites entre a vida e a morte, neste, pela primeira vez na série, vemos a tecnologia gerando a questão: o que é ser heterossexual ou homossexual? Quais os limites da sexualidade? “Será que eu sou gay?” é uma questão que obviamente assombra os protagonistas, e que fica em aberto no episódio. Por trás desta questão há outra, maior ainda: porque existe a necessidade de enquadrar nossa sexualidade num determinado padrão que atende por determinado nome? Em outras palavras, porque é tão importante para os protagonistas entenderem se seus comportamentos estão dentro ou fora da classificação ‘gay’? A resposta desta questão está na mesma masculinidade tóxica que explica porque os protagonistas só conseguem demonstrar seu afeto – ainda que de forma exclusivamente sexualizada – quando protegidos por seus avatares.
Brilhante episódio, e brilhante resenha!
Descobri o site há pouco tempo e já sou fã!
Olá, curti muito a análise. Onde posso curtir você pra receber notificações de novos posts? Queria ler outros sobre a mesma série.
Obrigado.
Olá, Kevin! Para ficar por dentro dos posts, é só assinar a nossa newsletter! Você também pode nos seguir no Instagram, Twitter, Facebook e Youtube! Os links para isso estão logo no final da análise =)
Além disso, nosso site tem muitos posts sobre diversos outros episódios de Black Mirror, basta você pesquisar “Black Mirror” na busca para acessar todos eles! =D
Adorei a publicacao. Passei por algo parecido com alguém na vida real, porém foi feito por meio de textos na época do SMS ilimitado da TIM, usando a imaginação pra criar a cena (obvio que cada pessoa pensa diferente, mas as ações eram as mesmas) entao quando soube desse novo episodio do black mirror e assisti, comparei com esse ocorrido de anos atras. No meu caso eramos duas meninas em que uma fazia a mulher e a outra o cara. Sinceramente, era incrivel, nos envolviamos tanto que nos sentiamos sendo os proprios personagens da história criada, pois nao, nao era feito de qualquer jeito, tinha uma coisa toda por tras, era parecido a um livro de romance interativo entre duas pessoas. Bem, anos passaram, comecei a duvidar de nao ser mulher hetero, nosso relacionamento/amizade ia e voltava várias vezes por que eu tenho o fato da familia ser evangelica (com bastante preconceito aos LGBTs), estavam doidos com a mudança radical no meu comportamento do dia a dia, pois eu passava todo tempo digitando no celular. O negocio era tão viciante que imaginei não ser apenas lesbica, mas ser homem trans, dai isso há ligação na minha vida real também, por que não escolhi ser o personagem masculino por acaso, eu sempre tive uma ligação desde criança, as meninas (minhas amigas) infancia e pré adolescencia diziam que eu era um garoto disfarçado no corpo de garota, afirmavam que agia totalmente como tal. Por exemplo, enquanto elas falavam de namorados, eu queria era ficar brincando com a bola de basquete na educacao fisica ou jogando num GamerBoy. E no meu intimo quieta, achava bizarro os do meu redor apontarem essas coisa de mim, na verdade acho até hoje por que continuam dizendo o mesmo. Encaro como algo natural da minha essencia, não que eu seja mesmo do sexo oposto. Mas convenhamos, quando comecei a escrever a história com essa outra menina, parecia que encontrava o meu lugar certo fazendo papel de homem (engraçado não?). Nossa mente humana é complexa.