O Ódio que Você Semeia | 5 lições transmitidas pelo filme

Como podemos andar desarmados se a nossa negritude é a arma que eles temem?“. Esse é um dos vários discursos poderosos citados em O Ódio Que Você Semeia, novo longa do diretor George Tillman Jr.

Inspirado no livro homônimo de Angie Thomas, o filme narra uma história infelizmente conhecida em diversos cantos do mundo. Starr (Amandla Stenberg) é uma jovem que presencia o assassinato de seu amigo Khalil (Algee Smith) por um policial que parou o veículo em que eles estavam. O policial viu Khalil se inclinando para o carro e atirou por achar que o jovem portava uma arma. Khalil morreu segurando uma escova de cabelo em suas mãos.

A partir deste fato, a história acompanha o conflito de Starr entre ceder ao medo, ou encontrar sua voz e fazer o que é certo.

O tema da agressão policial e o extermínio de jovens negros já foi abordado no passado em filmes como Fruitvale Station: A Última Parada (2013), com o astro Michael B. Jordan. Lamentavelmente, da estreia do longa de B. Jordan para cá, pouco mudou.

Em um mundo cada vez mais inflamado por discursos extremistas, O Ódio que Você Semeia é uma obra essencial e obrigatória, que faz o retrato de uma realidade que infelizmente ainda existe. Milhares de vidas negras já foram interrompidas ao redor do planeta por uma brutalidade policial desproporcional às suas ações. Afinal, por que o índice de brancos mortos “por engano” é infinitamente menor? O crime reside em ser negro?

Com um elenco poderoso, o longa a todo momento desperta sentimentos, ora de revolta, ira, dor, ora de esperança e amor. Amandla Stenberg brilha como Starr, e sua jornada é uma inspiração para todos que, apesar das adversidades, não desistem e continuam a lutar por seus ideais.

Abaixo, listamos as principais reflexões geradas por O Ódio que Você Semeia.

 

Os próximos tópicos desta crítica podem conter spoilers!

 

1 . A importância da comunidade em O Ódio que Você Semeia

Starr sorrindo sentada na porta de sua casa em O Ódio que Você Semeia

 

Comunidade é um grupo de pessoas que ocupam um espaço definido, e que estão conectadas por uma mesma herança histórica e cultural. São portanto pessoas que partilham uma mesma realidade e que possuem a mesma bagagem.

Em O Ódio que Você Semeia, Starr e sua família moram em Garden Heights, uma comunidade mais humilde formada majoritariamente por negros na Georgia, no sul dos EUA. Seu pai, Maverick Carter (Russell Hornsby) era um traficante que trabalhava para o King (Anthony Mackie), chefe do tráfico local. Após passar um tempo na prisão, Maverick fez um acordo com King para largar o tráfico. Ele se apaixonou por Lisa (Regina Hall), mãe de Starr, e abriu uma lojinha de conveniência na comunidade para prover o sustento de sua família.

Apesar dos apelos de Lisa para eles se mudarem, esse nunca foi o desejo de Maverick, que tinha orgulho de suas raízes e queria ajudar no bem-estar de sua comunidade, cuidando de seus habitantes.

Entretanto, após Starr presenciar o assassinato de sua melhor amiga quando tinha apenas dez anos, seu pai foi convencido por Lisa a transferir Starr e seus irmãos para a Escola Williamson, que ficava a 45 minutos de sua casa.

Lisa acreditava que seus filhos deveriam ter no mínimo as mesmas condições de vida que ela teve, e para ela isso significava se mudar para um lugar melhor, já que foi isso que seu pai havia feito por ela. Mas para Maverick a melhoria na qualidade de vida de seus filhos não tinha a ver com uma mudança de endereço. Para ele, seus filhos viveriam melhor quando abraçassem a comunidade em que habitavam e ajudassem no empoderamento de seu povo.

Neste sentido, ao longo de O Ódio que Você Semeia acompanhamos a evolução tanto de Starr quanto do próprio Maverick. Na primeira cena do longa, vemos o pai de Starr ensinando seus filhos, ainda pequenos, a lidar com uma possível abordagem policial: mãos no capô do carro, olhar submisso, atitude inofensiva. Ele sabia que a polícia atirava em negros inadvertidamente, então treinou seus filhos a sobreviverem conforme as regras do sistema em que viviam.

Mas no penúltimo ato do filme, Maverick faz um discurso emocionante que é a peça-chave para o empoderamento de Starr. Ele percebe que sua filha tem a força e a coragem necessárias para liderar sua comunidade rumo à emancipação. Starr não precisava mais adotar uma postura conformista. O nome que ele escolheu para ela tinha poder, e sua filha nasceu para brilhar.

Por sua vez, o fato de Starr habitar com seus semelhantes fez com que a jovem se sentisse acolhida. Ela não estava sozinha na luta. Havia milhares de pessoas que não apenas defendiam sua causa (como supostamente seus colegas de classe), mas que viviam na pele as consequências do racismo todos os dias. Viver em comunidade é ter a sensação de pertencer a algum lugar. É nunca estar sozinho (ainda que esteja).

 

2. Tupac Shakur e o significado de “Thug Life”

Khalil e Starr no carro em O Ódio que Você Semeia

 

“Thug life” sempre foi um termo utilizado no inglês para indicar “vida bandida”. Mas foi o rapper Tupac Shakur, morto em 1996, que deu à expressão um novo significado. Para ele, que ostentava orgulhosamente uma tatuagem com os dizeres em seu abdômen, “thug” não era um termo que indicava criminosos violentos e inescrupulosos. A expressão era direcionada a todos os marginalizados e excluídos da sociedade, que entravam para o crime por não possuírem as  mesmas oportunidades que os mais abastados.

Além disso, para o rapper, “Thug Life” podia também ser visto como um acrônimo para “The Hate U Give Lil’ Infants Fucks Everyone“/”O ódio que você semeia aos pequenos f*** todo mundo. Ao serem criadas à margem da sociedade e em uma cultura de ódio, as crianças crescem sem empatia alguma por seus opressores, e acabam descontando sua raiva e frustrações em toda a sociedade.

 

 

Com isso, Tupac queria gerar a reflexão de que a sociedade não é vítima da criminalização. Ela é parte ativa na construção da criminalidade.

 

3. O preconceito velado em O Ódio que Você Semeia

Starr no colégio com as amigas em O Ódio que Você Semeia

 

Diferente do recente Infiltrado na Klan, em que Spike Lee abordou o racismo de forma clara, em O Ódio que Você Semeia presenciamos um preconceito velado.

Tanto o policial assassino quanto parte da sociedade acreditam que ele agiu em legítima defesa, pois achava que o jovem negro era suspeito e estava portando uma arma. Ao mesmo tempo, o próprio tio de Starr, que é policial e também tem esse pensamento (apesar de ser negro) admite que se estivesse em um bairro rico e parasse um rapaz branco bem vestido, ele daria uma advertência antes de atirar. A diferença no procedimento do policial exclusivamente pela cor do suspeito é uma forma de racismo.

Starr sabe da existência do preconceito velado e por isso desenvolveu uma tática de sobrevivência em seu novo colégio. Ela se sente como uma agente dupla: em sua comunidade age de forma normal, mas teme não ser tratada do mesmo modo por agora estudar em um colégio de brancos. Já na sua escola, ela age diminuindo o tom de sua negritude: não usa o casaco que de acordo com ela a faria parecer como uma “favelada”, não usa as gírias que normalmente fala. Ela embranquece o seu ser para se encaixar melhor no novo ambiente, enquanto observa seus colegas brancos ouvirem hip-hop e tentarem agir como negros. De acordo com a personagem, este é um privilégio de ser branco, já que eles podem ter a atitude de um negro e continuarem inofensivos aos olhos da sociedade, sem serem estigmatizados como “favelados”.

Inicialmente, pode-se pensar que Starr exagera com relação à realidade em seu colégio. Ela aparenta ser bem tratada, tem amigos, um namorado. Ninguém parece agir com preconceito para com ela por sua cor ou pelo bairro em que mora. E então seu amigo é assassinado.

Rapidamente, a dinâmica de Starr com seus amigos e seu colégio muda completamente. A manifestação de alguns estudantes em favor do assassinato de Khalil é usada como justificativa para a suspensão das aulas, o que deixa seus colegas muito felizes. Hailey sente pena pelo assédio que o policial está sofrendo, afinal ele agia em legítima defesa.

Hailey personifica o preconceito tão enraizado em nossa sociedade que se torna invisível aos olhos de quem o pratica. Quando Starr a acusa de ter uma postura racista, Hailey fica revoltada. Como Starr pode realmente achá-la racista se uma de suas melhores amigas (a própria Starr) é negra?

De forma brilhante, O Ódio que Você Semeia nos faz refletir sobre o fato de que possuir amigos negros não isenta ninguém de ter preconceito. Starr explica a Hailey que a “amiga” não a teme porque Starr “embranqueceu” para se encaixar nos padrões do colégio. Ela ainda é negra, mas é inofensiva. E é por esta razão que elas se tornaram amigas. Se Starr tivesse agido naturalmente desde o início, provavelmente Hailey a acharia uma “favelada” e elas não teriam se aproximado.

A lição do filme é nos relembrar de que o racismo não é praticado apenas por aqueles que queimam cruzes, usam palavras ofensivas ou agridem negros. Existe um preconceito velado, que é igualmente nocivo.

 

4. A resiliência de Starr em O Ódio que Você Semeia

Starr faz um discurso com o megafone em O Ódio que Você Semeia

 

Uma das maiores lições do filme está na resiliência de Starr. Indiscutivelmente, a jovem teve uma adolescência difícil, já que presenciou a morte de seus dois melhores amigos de infância.

Quando Starr tinha apenas dez anos, Natasha morreu ao ficar no fogo cruzado entre uma briga de gangues, enquanto os amigos jogavam basquete. Seis anos depois, um policial mataria Khalil na sua frente, após os dois saírem de uma festa.

Fora isso, Starr teve que se adaptar à realidade de ser uma das únicas negras em um famoso colégio da região, ao mesmo tempo em que era vista com desconfiança por seus antigos amigos da comunidade, que se sentiram trocados pelos seus novos colegas de classe da jovem.

A adolescente tinha todas as justificativas para se entregar ao luto e à tristeza. Mas, aconselhada por April Ofrah (Issa Rae), Starr demonstrou enorme bravura ao decidir testemunhar o que viu, incluindo expor o tráfico de drogas que existia em sua região, comandado por King, até então intocável. Como represália, o traficante passou a ameaçar a jovem e sua família.

Mais uma vez, Starr não se calou perante as ameaças. Ela foi aconselhada por seu pai a não temer as consequências de fazer o que é certo.

O golpe final veio quando descobrimos que o Ministério Público decidiu não indiciar o policial pelo crime de assassinato. Inicialmente inconsolável, Starr se recompõe e cria forças para liderar um protesto buscando justiça para seu amigo.

Starr é um grande exemplo de resiliência, e sua jornada serve como inspiração para todos aqueles que sofrem preconceito ou que já perderam algum ente querido para a violência urbana.

 

5. O reconhecimento dos privilégios como forma de combate ao racismo

 

Diferente de Hailey, há personagens brancos no filme que conseguem enxergar seus preconceitos e aprender com eles. Acreditando apoiar Starr, Chirs (K. J. Apa) fala para a adolescente que ele não enxerga sua negritude. Para ele, não existe diferenciação entre as raças, são todos iguais. Starr então afirma que se Chris não vê sua negritude, ele não a enxerga.

A afirmação de Starr nos faz refletir sobre como não ver diferenciação entre as raças é um privilégio da raça dominante/opressora. Falar que todos são iguais, independente de cor, raça, sexo ou religião, parece óbvio, mas apesar do discurso ser certamente inclusivo, não é o que ocorre na prática.

Negros, gays, mulheres, dentre diversas outras minorias (se é que podem ser chamados numericamente de minorias) sofrem inúmeros preconceitos todos os dias. Sendo assim, como falar em igualdade? É fácil para um homem branco sustentar um discurso de que trata a todos de forma igual, sem se importar com as diferenças. Não há desafios ou barreiras para ele em razão de sua cor.

Realidade diferente vive o negro. É mais difícil para ele discorrer sobre a igualdade das raças quando vive na pele o preconceito por sua cor. Indiscutivelmente, todos deveriam iguais. Mas infelizmente, o racismo e diversas outras formas de preconceito existem. E reconhecer essa realidade em vez de negá-la é um importante passo rumo à mudança.

 

O Ódio que Você Semeia é um filme poderoso que trata de racismo e empoderamento negro. E inacreditavelmente, essas são mensagens que ainda se fazem extremamente necessárias nos dias de hoje.

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Boo Mesquita

Geek de carteirinha e cinéfila, ama assistir a filmes e séries, ir a shows, ler livros e jogar, sejam games no ps4 ou boards. Quando não está escrevendo, pode ser vista fazendo pole dance, comendo fora ou brincando com cachorrinhos. Me siga no Instagram!

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