Crocodile | Lágrimas de crocodilo, sociopatia e o mito da “verdade” [Explicação]
Crocodile tem sido um dos episódios mais criticados da 4ª temporada de Black Mirror. Confesso que ao terminar de assisti-lo realmente não fiquei com tantas questões na cabeça como USS Callister, por exemplo. No entanto, após alguma pesquisa, leitura de resenhas e discussões com amigos, percebi que a trama de suspense de Crocodile passa também por alguns temas bem interessantes.
O episódio, dirigido pelo australiano John Hillcoat (A Estrada) começa com um acidente que provoca o atropelamento e morte de um ciclista. O casal Mia (Andrea Riseborough) e Rob (Andrew Gower) dirigiam em uma estrada sob o efeito de drogas, e ao se deparar com o crime recém cometido, passam por um conflito moral sobre o que fazer: chamar a polícia ou se livrar do corpo?
O reencontro dos dois personagens, 15 anos depois, desencadeia uma série novos acontecimentos e assassinatos, desta vez intencionais. Enquanto Mia Nolan teria se tornado uma arquiteta bem sucedida com marido e filho, Rob nos é mostrado como um alcoólatra em recuperação, tentando lidar com a culpa pelo que fez no passado.
A história se densenrola à medida que somos apresentados a Kiran Sonia Sawar (Shazia Akhand), uma investigadora do ramo de seguros, que utiliza uma tecnologia inovadora: o recaller ou recuperador/recolector, aparelho que consegue resgatar e reproduzir em vídeo as memórias de um indivíduo.
A partir daí, somos levados à intensa saga de “sobrevivência” de Mia para encobertar os traços de seus crimes. E neste caminho, o episódio passa por temas complexos e profundos, que abordaremos a seguir nesta resenha.
Lágrimas de crocodilo e o cérebro reptiliano
Quando crocodilos e jacarés devoram suas presas eles não as “mastigam”. Isso faz com que a deglutição do alimento cause uma pressão no céu da boca destes répteis, comprimindo suas glândulas lacrimais, o que gera lágrimas em seus olhos.
Daí surgiu a expressão “lágrimas de crocodilo”, usada quando alguém simula o choro mesmo sem um sentimento real por trás.
É isto que ocorre com Mia. A partir de certo ponto, suas lágrimas perdem o significado. A personagem passa o episódio todo chorando, apesar de não parecer estar realmente arrependida, pois continua cometendo assassinatos para encobertar suas ações.
A impressão que temos é de que Mia chora por seu mundo estar desabando, mas não exatamente por suas ações.
Outra interpretação possível diz respeito a Teoria do Cérebro Trino, defendida pelo neurocientista Paul MacLean e que divide o cérebro dos humanos e primatas em três unidades com funções diferentes.
A primeira unidade seria o Cérebro Reptiliano ou basal, responsável por reflexos simples e emoções primárias como fome e sede. Ou seja, tem como principal função garantir os instintos mais básicos relacionados a sobrevivência.
A partir de certo ponto na história de Crocodile, é isso que passa a guiar as ações de Mia: a busca desenfreada pela sua sobrevivência e de sua família.
O comportamento antissocial
No início do Crocodile, Mia quis fazer a coisa certa e confessar o crime. Posteriormente, passou a esconder suas ações e assassinar em sequência todos que poderiam ameaçar sua sobrevivência ou a de sua família.
Será que podemos reduzir a mudança no seu comportamento ao simples fato de que Mia passou a ter mais a perder, por ter virado uma arquiteta bem sucedida com uma família para cuidar? Talvez exista mais do que pode ser observado na superfície.
Na psicologia, comportamento antissocial é o termo que caracteriza o comportamento que despreza, ignora ou transgride normas da sociedade em benefício próprio ou para satisfazer seus impulsos. Muitas vezes esse comportamento pode ser agressivo e ilegal.
Não podemos confundi-lo com o Transtorno de Personalidade Antissocial (ou TPA), que também é referido como sociopatia. Este é um transtorno de personalidade, que é caracterizado pelo repetido comportamento impulsivo e antissocial descrito acima, com desprezo pela normais sociais e indiferença em relação aos direitos ou sentimentos dos outros. Ou seja, comportamentos guiados por uma total falta de empatia, buscando remover ou reduzir eventos perturbadores, ameaçadores ou perigosos.
Importante ressaltar que apesar deste distúrbio ter como característica a falta de empatia com outros seres humanos, essa falta de empatia não se estende necessariamente aos membros de sua família. Isto pode variar de acordo com o grau do transtorno. No caso de Mia em Crocodile, ela parece ter sim empatia e compaixão com sua família, buscando sempre o melhor para ela.
Mas a questão que pode ser levantada é a de que apesar de 15 anos depois Mia não sentir qualquer remorso, mesmo após Rob relatar que mulher da vítima que até hoje esperava a volta do marido, nas primeiras cenas do episódio a personagem parecia sim ter empatia e sentimento de culpa, pois queria chamar a polícia e confessar o ocorrido.
O Transtorno de Personalidade Antissocial costuma ir se estruturando desde a infância e adolescência, com alguns dos sintomas observáveis através de comportamentos manipuladores ou agressivos, sem desmonstrar empatia. No entanto o transtorno se intensifica na fase adulta e o diagnóstico só é recomendado a partir dos 21 anos.
E ainda existe a possibilidade de algum outro transtorno mental, ou o uso patológico de alcóol, terem desencadeado um surto psicótico, que se trataria de um episódio pontual de desorganização mental gerando comportamentos socialmente estranhos devidos a uma incapacidade de pensar racionalmente.
Enfim, sempre é difícil diagnosticar um personagem fictício, baseado em uma obra de 1 ou 2 horas e que geralmente apresenta situações extremas. São apenas hipóteses.
O mito da verdade imparcial
Um dos temas recorrentes de Black Mirror é o conceito de “verdade”. Não à toa, este também é um dos temas mais buscados pela filosofia moderna, através de figuras como Descartes e Kant.
Através da razão, estes buscavam se livrar de toda a subjetividade e das distorções provocadas pelas limitações dos nossos aparatos sensoriais, tentando chegar o mais próximos da verdade absoluta quanto podiam.
Em Crocodile, a tecnologia tem o papel de ajudar os seres humanos a escaparem das armadilhas de seus sentidos e da nebulosidade da memória, ajudando a relembrar os acontecimentos da forma real como aconteceram. Esta é a razão da invenção do recaller, que ao reproduzir em vídeo as memórias de um indivíduo, trataria a verdade dos fatos tais como ocorreram.
Ou nem tanto.
Ao explicar o funcionamento do recuperador de memórias, Kiran nos explica que a memória é subjetiva e muitas vezes pode não ser 100% apurada. No episódio, este problema seria resolvido através do cálculo de uma média entre as lembranças de diferentes pessoas que testemunharam um determinado acontecimento, afim de eliminar os extremos e deixar de lado memórias irreais ou subjetivas demais. Uma solução elegante.
Outra tecnologia apresentada por Black Mirror com objetivo da busca pela verdade absoluta é a usada em The Entire History of You, terceiro episódio da primeira temporada. As lentes de contato inteligentes são utilizadas para resgatar e projetar memórias visuais de experiências vividas pelos personagens.
Este tema é muito interessante e combustível para acaloradas discussões filosóficas: existe uma verdade imparcial ou ela sempre irá depender do observador?
Muitas pessoas responderão que sim, que existiria uma verdade imparcial. Afinal, uma câmera de vídeo é capaz de capturar a verdade nua e crua de um acontecimento, sem subjetividade. No entanto poderíamos discordar, afirmando que, dependendo do ângulo e da iluminação, uma filmagem pode mostrar diferentes nuâncias que mudariam a percepção sobre um fato.
Ironicamente, ao investigar o acidente, Kiran se depara com uma câmera quebrada, atuando como uma metáfora para passar nos passar a mensagem: não existe ponto de vista imparcial ou verdade absoluta no mundo, apenas discursos e pontos de vista.
Curtiu o review? Você pode ler também a resenha de USS Callister, Arkangel, Hang the DJ, Metalhead e Black Museum. Ou curta nossa página no Facebook. 😉
Excelente artigo! Já visitei o seu blog outras vezes, porém nunca
tinha escrito um comentário. Pus seu blog
nos meus favoritos para que eu não perca nenhuma atualização.
Grande abraço!
ótimo texto sobre o episodio, acabei de assistir e ele não me trouxe tanto questionamentos quanto Uss Callister… mas após a leitura do seu texto conseguir enxergar a critíca e o que o episodio quis passar.
valeu
Boa análise. Na tentativa de apagar o seu passado e manter sua reputação, a personagem nesse episódio mostrou o desastre do orgulho e do ego humano, o quanto tende a piorar quando foge de responsabilidade. Ela não sabia que era tão má até que sua imagem fosse ameaçada.
Fantástico sua análise, acrescentaria um comentário de como a nossa memória, uma vez que a história inventada é criada na mente, ou seja, a mentira se torna verdade na mente, isto passa influenciar nas reações do corpo, hormonais, memória e etc.
Minha interpretação é que desde o início ela não tinha empatia. No início do episódio ela queria confessar o crime (o atropelamento) pq ela n era a culpada e não sofreria as consequências. No momento em que ela ajudou a dar fim ao corpo, começou a saga pela sobrevivência, por isso que mesmo sabendo da notícia que a mulher do ciclista ainda esperava por ele, msm assim ela n se abalou.
Muito legal sua análise do episódio. Chocante e surpreendente “Crocodile”!
Um dos episódios mais indigestos que vi , mostra o verdadeiro ser humano na sua forma mais cruel , ate aonde uma pessoa sem limites morais é capaz de ir pra esconder um segredo…mórbido demais.
Creio que esse episódio foi um dos que conseguiu mostrar com eficácia o lado mais egoísta , cruel e horrível do ser humano.
Eu tenho a sensação de que ela chora, não por cansaço, e sim para afirmar algo a si mesma numa tentativa de se sentir menos culpada. Creio que ela chora pelo desespero de tudo aquilo estar acontecendo com ela. Tipo q é quase como se ela dissesse pra si mesma: “eu mato pessoas, agora eu não sou tão ruim, afinal, eu choro”
Ou seja, lágrimas de crocodilos.
Uma ironia é que ela mata a mulher – que certamente é paquistanesa, seguidora do islamismo, pela veste que de forma constante usava – que descobre o crime e no final a única testemunha é um animalzinho conhecido como porquinho da índia.
Uma pena que esse trocadilho só funciona em português, já que em inglês é chamado de Guinea Pig, seria então um porco da Guiné, sendo que Guiné fica na África, e porquinho da índia nem tem origem na índia mesmo, já que eles são endêmicos da américa do sul, quando os europeus chamaram de ”da índia” porque foi onde eles pensaram ter chegado quando na verdade era américa. Daí agora esse comentário nem faz mais tanto sentido, apenas que vou manter.