Com amor, Simon | Representatividade e o genocídio LGBT na ficção

Com amor, Simon é um filme despretensioso, assim como o livro que o originou. Baseado em Simon Vs. A Agenda Homo Sapiens, da americana Becky Albertalli, o filme conta a história de Simon (Nick Robinson), um garoto de dezesseis anos que leva uma vida comum. Vai à escola, sai com os amigos, assiste séries com a família e tem todos os anseios e dúvidas de um adolescente. Só há um detalhe que torna a vida de Simon especial: ele é gay e nunca contou para ninguém.

Dirigido por Greg Berlanti, responsável por séries como Flash e Supergirl, o filme consegue trazer o já conhecido modelo de filmes adolescentes americanos sem cair num clichê, justamente porque esses filmes nunca possuem um protagonista homossexual. Berlanti, inclusive, é abertamente gay, mostrando a importância de minorias poderem contar suas próprias histórias de forma honesta e livre de estereótipos.

A escolha do elenco foi certeira no quesito identificação do público jovem. Nick Robinson encarna o protagonista de forma carismática e natural. O núcleo principal de amigos e colegas que rodeiam Simon mostra uma preocupação com a diversidade e inclui muitos dos atores e atrizes jovens que estão em alta no momento, como Katherine Langford, que interpretou Hannah Baker na série 13 Reasons Why, da Netflix. Seus pais, vividos por Jennifer Garner e Josh Duhamel, são rostos conhecidos há muito tempo na TV americana. Além disso, a trilha sonora casa perfeitamente com a história e contribui com o sentimento familiar de estar assistindo a um filme adolescente.

Na história, a vida de Simon se enche de entusiasmo quando ele passa a trocar e-mails com Blue, um correspondente anônimo que estuda em sua escola e também é gay. Mesmo sem conhecer suas identidades, os dois encontram apoio mútuo e podem falar abertamente sobre suas sexualidades e o medo de serem descobertos por suas famílias e colegas de escola antes de estarem preparados para isso. A trama se desenvolve quando Simon se apaixona por Blue e tenta descobrir, em meio a tantas possibilidades ao seu redor, quem é o menino com quem conversa todos os dias.

Abordando a homossexualidade de forma leve e casual, Com Amor, Simon é repleto de um alívio cômico saudável, fazendo o espectador pensar sobre as mais diversas questões que envolvem a temática, desde o preconceito e o conflito com amigos e familiares até o amor na adolescência. É um filme teen, para toda a família, simples de ser entendido, e é aí que mora a sua grandiosidade. Não há superprodução para Oscar, diálogos complexos ou fotografia excepcional. Somente a simplicidade de uma história que pode tocar tanto um adolescente que passa pelas mesmas coisas que Simon, quanto sua família que não o compreende. E este é o grande mérito do filme.

A representatividade de pessoas LGBT na TV e no cinema quase nunca é feita de forma tão simples e carismática para o público mainstream, com um personagem adolescente e uma narrativa digna de Sessão da Tarde. Produções que tocam em pontos sensíveis para a sociedade normalmente carregam consigo um enorme peso dramático, e isso fica ainda mais evidente quando incluem personagens LGBT, para quem os finais trágicos são frequentes.

Faça o seguinte exercício: pense em quantas séries, filmes ou livros com personagens LGBT existem. Agora pense em quantos desses personagens tiveram finais felizes ou, pelo menos, chegaram vivos ao final. Ao contrário de Com amor, Simon, o comum para as histórias com protagonistas LGBT que chegam ao grande público são narrativas repletas de drama, normalmente com um viés mais cult e um final que arranca lágrimas dos espectadores. A seguir, vamos explorar os motivos pelos quais isso acontece.

Tropes e o assassinato de pessoas LGBT na TV e no cinema

Antes de tudo, precisamos explicar o que é um trope. O termo em inglês é utilizado para denominar uma estratégia comum empregada por roteiristas para incluir na história algo que o público vai reconhecer. Tropes não são necessariamente bons ou ruins, são apenas artifícios familiares que movimentam a narrativa e o público engole. Um exemplo comum de trope é o estereótipo da donzela em apuros ou os elementos da jornada do herói. O fato é que, quando se trata de personagens LGBT, a morte e os finais infelizes são tão comuns que isso já é considerado um trope popularmente chamado de “Bury Your Gays”, ou “enterre seus gays”, em tradução livre.

Há mais de 20 anos, a GLAAD (Gay and Lesbian Alliance Against Defamation), uma organização não-governamental americana cujo objetivo é o monitorar a forma como a mídia retrata pessoas LGBT, documenta os personagens não-heterossexuais em produções fictícias, além da cobertura da mídia sobre assuntos referentes à comunidade. Em 2016, o relatório da GLAAD mostrou algo muito positivo: um recorde no número de personagens LGBT nas séries de TV daquele ano. Dos quase 900 personagens que estrelaram as produções, 43 eram lésbicas, gays, bissexuais, transexuais ou queer. Isso constitui aproximadamente 4,8% de todos os personagens, um marco nunca antes alcançado pela comunidade LGBT.

Quando falamos sobre representatividade de grupos marginalizados, os estereótipos são a principal preocupação. Contudo, apenas cuidar para que esses estereótipos não estejam presentes nem sempre é o suficiente para que a imagem desses grupos seja fixada da melhor forma no imaginário popular. Sendo assim, os rumos que suas histórias tomam também precisam ser analisados. E é agora que chegamos à parte ruim. Dos 43 personagens recordistas em 2016, 27 morreram, segundo o site americano The Wrap. Para piorar a situação, a maior parte desses personagens era composta por mulheres lésbicas e bissexuais, evidenciando não somente o padrão dos roteiristas em matar personagens LGBT, mas também em não dar finais felizes, principalmente, a mulheres queer. Por fim, as mortes se encaixavam em dois padrões: 1. não tinham importância crucial para a narrativa; 2. ajudavam o/a protagonista, sempre cisgêneros e heterossexuais, a alcançar algum objetivo.

Normalmente, os filmes e séries que não são voltados especificamente para esse público contam com apenas um personagem ou casal LGBT. Agora imagine que você é um jovem que gosta de séries. Se você é hétero e o seu personagem favorito ou um integrante do seu OTP (“one true pair”, ou o seu “par ideal”) morre, você provavelmente terá outros inúmeros personagens para se apegar, torcer e te fazer sentir representado. Contudo, se você é um jovem LGBT e o único personagem parecido com você morre, a sua representatividade, ao menos naquele programa, chega ao fim. Caso essa representatividade seja protagonizada por um casal e um deles é morto, o que resta é apenas a infelicidade do outro.

Isso acontece porque, desde que a indústria do entretenimento assumiu a existência de pessoas LGBT, as orientações para os roteiristas, diretores e produtores são sempre para dar um final trágico a esse tipo de personagem. Há muito tempo esse artifício é utilizado com a intenção de “educar” o público, mostrando as péssimas consequências que determinados comportamentos trazem para a vida de pessoas que ousam desafiar a norma social. Foi para tentar mudar esse padrão que associações como a GLAAD e o CCDML (Canada’s Centre for Digital and Media Literacy) dedicaram alguns de seus estudos à documentação dessas representações midiáticas. Atualmente, a TV canadense possui até mesmo um canal que exibe somente conteúdo voltado para o público LGBT, o OutTV.

Queerbaiting e a falta de representatividade

Ainda é impossível dizer com precisão, mas alguns estudos estimam que cerca de 4 a 11% da população se encaixa no espectro LGBT. Isso significa que, em 2016, mesmo com o final trágico de mais da metade desses personagens, foi possível afirmar pela primeira vez que a representatividade LGBT em programas televisivos era condizente com a realidade, ao menos numericamente.

Para não perder essa pequena, porém significativa parcela da audiência, um outro artifício comumente utilizado pelos roteiristas é o queerbaiting. Do inglês “queer” (termo que identifica pessoas da comunidade LGBT) e “bait” (isca), o termo se refere à prática de incluir insinuações homoeróticas entre dois personagens nas entrelinhas da narrativa, sem a intenção, porém, de transformar a relação em algo real. Essa estratégia estimula o interesse do público LGBT no programa e, ao mesmo tempo, não se compromete com a audiência heterossexual.

Existem evidências de queerbaiting em séries como House, Once upon a Time, Sherlock, Riverdale, entre muitas outras. Um dos exemplos mais famosos é formado por Dean Winchester e Castiel, em Supernatural. Mais recentemente, os personagens Poe e Finn, de Star Wars, entraram na lista de personagens que possivelmente viverão um “bromance” — e apenas isso.

O queerbaiting é prejudicial por ser uma estratégia oportunista —  se beneficia da audiência de pessoas LGBT, ávidas por um pouco de representatividade, sem de fato mostrar comprometimento com a realidade e os problemas enfrentados por esse público. Além do mais, a prática acaba por invisibilizar a existência de uma comunidade que só há pouquíssimo tempo passou a se ver representada de forma minimamente positiva.

Minimamente, pois, ainda hoje, histórias de personagens LGBT são comumente retratadas com um pano de fundo dramático, mesmo fora do cenário mainstream. Os recentes e premiados Moonlight e Me Chame Pelo Seu Nome seguem a receita de grandes produções, com roteiros complexos e personagens que passam por inúmeras provações ou terminam sozinhos no final. Pode ser surpreendente mas, até hoje, a maior probabilidade de desfecho para um personagem LGBT na ficção é a morte, solidão ou infelicidade.

É por isso que filmes e livros como Com amor, Simon são tão importantes. E essa importância se dá justamente pelo fato do filme fazer o público refletir sobre os medos e realidades de pessoas que estão ao seu redor com um personagem principal que é simples, franco e carismático, numa narrativa com os mesmos adjetivos.

Não é que o sofrimento das pessoas LGBT não deva ser retratado na indústria do entretenimento. Pelo contrário, é preciso que os dramas sejam contados para que o restante do público tenha uma mínima noção dos problemas enfrentados por essas pessoas. Contudo, para muitos jovens, filmes como Como Amor, Simon podem ser a diferença entre gostar de si ou não. Afinal, às vezes, tudo que um jovem LGBT precisa é sentar em frente à tela e sentir que também pode ser feliz.

No Brasil, Com amor, Simon tinha estreia prevista para o dia 22 de março, mas foi adiado para o dia 5 de abril pela Fox Film. Algumas salas de cinema, porém, já estão exibindo o filme antes da estreia oficial.

Já assistiu o filme ou leu o livro? Diga o que achou nos comentários! 🙂

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