O Monstro ao Lado (Netflix) | Culpado ou inocente? [Análise]

Nos Estados Unidos, um pacato ucraniano naturalizado americano tem sua aposentadoria ameaçada ao ser acusado de ter cometido crimes contra a humanidade durante o Holocausto. Esta é a premissa de O Monstro ao Lado, nova minissérie documental da Netflix.

O ucraniano John Demjanjuk chegou aos EUA em 1952 refugiado da 2ª Guerra Mundial. Por décadas, foi um imigrante exemplar: trabalhava na fábrica da Ford, tinha esposa e filhos, ia à missa e participava ativamente da comunidade ucraniana de Cleveland.

Mas O Monstro ao Lado expõe que Demjanjuk possivelmente guardava um horrendo segredo de sua família e amigos. O cidadão exemplar seria na verdade um sádico guarda nazista responsável por controlar a câmara de gás no Campo de Extermínio em Treblinka durante a 2ª Guerra Mundial. Pela tortura que praticava contra suas vítimas antes que adentrassem a câmara, Demjanjuk ganhou a alcunha de “Ivan, o Terrível“.

Seria possível que alguém que cometeu crimes tão sinistros conseguisse manter uma vida tão normal por mais de 20 anos? Seria mesmo John Demjanjuk e Ivan, o Terrível a mesma pessoa?

Quem era Ivan “John” Demjanjuk?

Ivan “John” Demjanjuk nasceu na Ucrânia em 1920. Duas décadas depois, fez parte do Exército Vermelho da URSS até ser capturado pelos nazistas em 1942.

O que permanece um mistério são suas ações entre sua captura pelo exército nazista e a chegada aos EUA em 1952, onde passou a trabalhar como mecânico em uma fábrica da Ford.

Demjanjuk sustentou até sua morte que em 1942 foi feito prisioneiro pelos nazistas em um campo de trabalho forçado. Posteriormente, foi obrigado a trabalhar como guarda para o exército nazista.

Ao pedir refúgio aos Estados Unidos, Demjanjuk preencheu uma ficha de entrada no país que demonstra que o ucraniano reconhece ter trabalhado no campo de extermínio de Sobibor durante o Holocausto. No entanto, ele argumenta que foi forçado a trabalhar no local como parte de sua condição de prisioneiro de guerra.

Não é esta a versão apresentada pelos investigadores e historiadores em O Monstro ao Lado.

As evidências apontam que John Demjanjuk se voluntariou para trabalhar nos campos de extermínio de Treblinka e Sobibor, localizados na Polônia ocupada pelos nazistas.

O guarda nazista passou a ser chamado de “Ivan, o Terrível” pela brutalidade como torturava os prisioneiros logo antes deles serem assassinados nas câmaras de gás. Relatos de sobreviventes apontam que Ivan era sádico e gostava de cortar as orelhas e os narizes de suas vítimas, especialmente de mulheres e crianças.

As suspeitas contra Demjanjuk foram levantadas pelo governo americano no final dos anos 70. Diferentes sobreviventes do campo de extermínio de Treblinka apontaram para a foto do ucraniano ao darem testemunhos para a polícia israelense sobre o temido guarda nazista controlador da câmara de gás do local.

O ucraniano teria conseguido refúgio nos EUA ao se passar por uma vítima do Holocausto, em vez de um dos seus agentes. Essa era uma estratégia usualmente utilizada por nazistas que buscavam fugir da retaliação pelos atos praticados durante a 2ª Guerra Mundial.

Após a reunião das provas demonstrando o papel de Demjanjuk no Holocausto, o governo americano revogou a cidadania do aposentado. Em 1981, decidiu extraditá-lo para Israel para que fosse réu no julgamento mais midiático da época exposto em O Monstro ao Lado.

O julgamento em O Monstro ao Lado

O julgamento de John Demjanjuk em Israel tinha por base provas documentais e relatos de sobreviventes do Holocausto.

Como demonstrado em O Monstro ao Lado, Demjanjuk foi declarado culpado de todas as acusações e sentenciado à morte pelos três juízes da Corte Israelita.

Entretanto, em 1993 a sentença foi reformada pela Suprema Corte israelense. Foram encontrados documentos contendo relatos de guardas nazistas que apontavam inconsistências sobre a identidade de Ivan, O Terrível. Para uns, ele tinha cabelos e olhos castanhos. Para outros, era muito alto.

As novas evidências foram o suficiente para que a Suprema Corte entendesse que havia dúvida razoável quanto à identificação de Demjanjuk como Ivan.

Assim, o réu foi posto em liberdade e retornou aos EUA.

Mas em uma nova reviravolta do caso, um juiz americano decidiu em 2002 que havia evidências o suficiente para apontar que Demjanjuk era um guarda no campo de extermínio de Sobibor. Assim, o ucraniano foi novamente extraditado em 2009 para responder na Alemanha por crimes durante o Holocausto.

No novo julgamento, o réu era acusado do assassinato de 27.900 prisioneiros. Ou seja, na nova acusação Demjanjuk responderia por cada uma das mortes ocorridas durante o período em que serviu no campo de extermínio de Sobibor.

Como o novo julgamento aconteceu quase 70 anos após o Holocausto, não havia mais sobreviventes que pudessem identificar o acusado como guarda de Sobibor. Havia apenas a carteira de identificação da SS e outros documentos contendo ordens de superiores nazistas e o nome de Demjanjuk.

O tribunal de Munich entendeu que as provas documentais eram suficientes e Demjanjuk foi considerado culpado de todas as acusações. Pelos crimes foi condenado a cinco anos de prisão.

No entanto, na reviravolta final do caso exposta em O Monstro ao Lado, Demjanjuk faleceu aos 91 anos enquanto aguardava o julgamento de sua apelação. Pelas leis alemãs e em observância ao princípio da presunção de inocência, o ucraniano condenado em 1ª instância morreu como um inocente.

Culpado ou Inocente?

Um dos fatores mais intrigantes de O Monstro ao Lado é que assim como em The Staircase não há certeza da culpa ou da inocência de Ivan John Demjanjuk.

Apesar do título tendencioso, O Monstro ao Lado é um documentário consistente em relatos e imagens reais dos julgamentos que podem servir como prova tanto pela inocência quanto pela culpabilidade do acusado.

Todos os entrevistados parecem certos de suas conclusões. Tanto os promotores quanto os advogados que participaram do julgamento de Israel parecem até o dia de hoje convictos de que o réu era, respectivamente, culpado e inocente.

Para a acusação, após ser capturado em 1942, Demjanjuk se voluntariou para colaborar com os nazistas durante a 2ª Guerra Mundial. Para isso, recebeu seu treinamento no campo de Trawniki. Foi lá onde aprendeu suas funções como guarda e recebeu sua carteira de identificação nazista.

Esse documento foi uma das principais bases para a acusação. Ela continha uma fotografia de John, e o colocava como membro da força militar nazista SS.

A defesa rebatia a carteira de identificação argumentando que o documento era falso. Ele teria sido obtido pela URSS com o objetivo de desacreditar Demjanjuk, um cidadão naturalizado americano.

Além disso, os advogados constataram que a foto não pertencia originariamente ao documento, pois continha furos que não possuíam correspondência no resto da carteira. Peritos também atestaram que não existia nenhum outro documento de identificação da SS que se assemelhava àquele.

Todos os sobreviventes que participaram do julgamento também identificaram Demjanjuk como Ivan, o Terrível. “Eu digo isso sem hesitar, sem nenhuma sombra de dúvida. O homem para quem estou olhando agora é Ivan de Treblinka, das câmaras de gás…eu vejo seus olhos, seus olhos assassinos…“, dizia o testemunho do sobrevivente Eliyahu Rosenberg.

Apesar disso, foi descoberto que o depoente em questão havia entrado em contradição. Rosenberg previamente depôs que Ivan fora morto em uma rebelião dos prisioneiros de Treblinka antes do fim da guerra.

Outra vítima disse em O Monstro ao Lado que foi chamada a depor nos EUA, onde identificou em uma foto Demjanjuk como Ivan. Mas ao ser questionada por um dos advogados como fez para sair da Europa e chegar nos EUA, o sobrevivente respondera: “de trem”.

Pelo fato de todas as testemunhas possuírem elevada idade à época do julgamento, a estratégia da defesa foi desacreditá-las ante a suposta senilidade dos sobreviventes.

Os próprios documentos analisados no caso eram contraditórios. Além da carteira de identificação nazista no nome de Demjanjuk, este admitiu também possuir uma tatuagem com seu tipo sanguíneo que o identificava como membro da SS. Mas a defesa se baseava no argumento de que o acusado foi forçado a servir como guarda nazista, não tendo operado câmaras de gás.

Em contraposição à sua identidade nazista, os relatos de outros guardas demonstravam não haver consenso sobre a identidade de Ivan. A depender do testemunho, o temível nazista poderia ser loiro, moreno, alto ou baixo.

A Suprema Corte israelita acabou por priorizar a descoberta desses documentos contraditórios à memória dos sobreviventes, que pareciam certos de que estavam diante do operador da câmara de gás de Treblinka.

Já o julgamento de Munich entendeu por haver provas suficientes para atrelar Demjanjuk ao campo de extermínio de Sobibor. E por seus crimes durante o Holocausto, o ucraniano quase centenário foi condenado a cinco anos de prisão.

No final de O Monstro ao Lado, um dos netos de John Demjanjuk diz que tem a consciência limpa de que seu avô “fez o que tinha que fazer para sobreviver“. Em outras palavras, o neto implica que ainda que seu avô tenha tirado algumas vidas na 2ª Guerra Mundial, ele o fez porque a sua própria vida estava em risco caso ele se recusasse a fazê-lo.

Ele como prisioneiro apenas cumpria ordens.

O julgamento de Eichmann e a Banalidade do Mal

Com o fim da 2ª Guerra Mundial, foram muitos os nazistas que conseguiram fugir se passando por refugiados. Um deles foi Adolf Eichmann.

Eichmann era tenente-coronel da SS e cumpriu uma importante tarefa no governo de Hitler. Ele era o principal responsável pelo transporte de milhões de judeus para os campos de extermínio. Foi portanto peça crucial na Solução Final (o plano de extermínio dos judeus) durante o Terceiro Reich.

Graças à ajuda de um padre austríaco simpatizante do nazismo Eichmann fugiu para a Argentina. Acabou sendo capturado, e em abril de 1961 foi julgado no Tribunal Distrital de Jerusalém por crimes contra a humanidade.

Jornalistas de todo o mundo cobriram o julgamento. A correspondente enviada pelo The New Yorker era a filósofa Hannah Arendt.

Enquanto toda a mídia enquadrava Eichmann como um “monstro”, foi justamente sua falta de “monstruosidade” que causou perplexidade em Hannah.

Não se tratava de um monstro. Na verdade, Adolf Eichmann era um homem bastante comum. Um burocrata mediano, que havia trabalhado como administrativo de vendas antes de se juntar a SS.

Ao ser posto a julgamento, Eichmann reduziu sua defesa em um argumento para ele óbvio: os supostos crimes foram cometidos apenas porque o acusado cumpria as ordens de seus superiores. Em um regime hierárquico cumprir o que fora ordenado é tudo o que é esperado de um bom funcionário.

O que trouxe mais espanto a Hannah foi justamente o fato de Eichmann não ser o típico sociopata. Ele não possuía histórico particularmente violento. Além disso, o oficial nazista teve acesso à educação, tocava instrumentos e praticava esportes.

Apesar de bem instruído, ao ser confrontado com ordens inquestionavelmente absurdas (o extermínio de milhões) Eichmann não teve qualquer senso crítico para negá-las. Sem hesitar, cumpriu todas as ordens porque sequer lhe ocorreu que poderia não cumpri-las.

Arednt observou portanto que a inteligência diverge da razão e da reflexão. Eichmann não era burro. Ele possuía inteligência voltada para a solução de problemas, e consequentemente se mostrou valioso durante o regime de Hitler.

O que faltava a Eichmann era a capacidade de reflexão. Se ele não exercitava o seu senso crítico, por consequência não conseguia discernir ordens válidas daquelas absurdas.

Com isso, ele obedecia os ordenamentos de levar judeus à sua morte como quem cumpre uma ordem cotidiana. O conteúdo do ordenado era irrelevante. A violência, portanto, se tornou banal.

Ainda que John Demjanjuk realmente tivesse sido forçado a colaborar com os nazistas, ainda que ele estivesse apenas cumprindo ordens, isso realmente importa?

Até que ponto devemos ser responsabilizados pela nossa (in)capacidade de discernir o que é certo do que é errado?

Essa discussão é extremamente relevante porque a condenação de Demjanjuk aos 91 anos serviu para passar uma mensagem. Ele foi condenado a apenas cinco anos pela morte de 27.900 pessoas porque a condenação em si possuía um peso maior do que o seu conteúdo.

O julgamento de um nazista que cometeu crimes contra a humanidade quase 70 anos após o Holocausto exprime a noção de que esse tipo de comportamento nunca mais será tolerado.

Ao mesmo tempo em que reforça essa ideia, O Monstro ao Lado faz uma provocação. O quão conivente somos com comportamentos anti humanitários quando nos é conveniente?

Para isso, relembra o grande colaborador da NASA Wernher von Braun. Apesar de também ter sido do Partido Nazista, o engenheiro é reverenciado nos EUA. Ele foi líder no projeto aerospacial americano durante a Corrida Espacial. Desenvolveu ainda o foguete Saturno V que levou os astronautas à Lua em julho de 1969.

Por que von Braun apesar de nazista é aclamado na história, enquanto outros são julgados por crimes contra a humanidade? Estaria a penalidade atrelada à (in)utilidade do indivíduo?

Assim como ocorrido em Infiltrado na Klan, o final de O Monstro ao Lado é pouco otimista. Enquanto neonazistas buscam um retorno triunfal do movimento, nos resta a máxima de que a história deve sempre ser lembrada para não ser repetida.

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